Luiz Rosemberg Filho sobre "Êxodo"

Texto do cineasta Luiz Rosemberg Filho sobre o "Êxodo" no site do ViaPolítica
http://www.viapolitica.com.br/cinema_view.php?id_cinema=117


Êxodo
Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar

O importante do cinema experimental é não ser autoritário ou repressivo. Ainda que constantemente combatido, se oferece como expressão complexa do seu compromisso com a poesia, a música, a pintura, a dança, o afeto, o humano, a história e o país. Queiram ou não, o cinema experimental é uma espécie de desintoxicação do horror televisivo ou a grande bolsa anal do capital audiovisual. O seu processo passa pelo encantamento das obscenas proibições impostas pela violência de um mercado-excremento. E que, por não teatralizar o espetáculo do nada, torna-se verdadeiramente original e ousado. Deixando transparecer e brotar o mal-estar real diante dos discursos e filmes que nada dizem, dos meios de comunicação à política. E são muitos! O cinema experimental é um movimento marcado por rupturas e transgressões.

O cinema brasileiro dos últimos anos, do PSDB ao PT, “vive” da administração de velhos clichês sempre justificados pelos “realizadores”, burocratas, críticos, majors e pela TV. O casamento está morto mas permanece como referência dos negócios pra lá de duvidosos. Quem não gosta do farfalhar do dinheiro? Falta densidade e transparência à velha máscara, mas... Negócios são negócios. E como tais devem ser preservados. Desfazendo-se, assim, definitivamente, uma idéia original de cinema-pensado. E os poucos que ainda o fazem são guetificados na luta pela sobrevivência, sem o menor respeito.

A rigor, anda faltando postura, saber e caráter a esse nosso tempo de múltiplas inutilidades. Do Império à República, vive-se uma atmosfera sombria, tediosa e decadente. E hoje, com a ajuda da TV, realiza-se compactamente o processo de embrutecimento de tudo e de todos. “Êxodo”, último longa silencioso de Marcelo Ikeda, passa-nos uma sensação melancólica de partida. De esquecimento. De dor e de morte. E o mais duro de tudo é que o país não tem como contradizer o filme, com a sua fome de nos exilar da vida. Tal imoralidade nos acompanha desde a descoberta. E o que era para ser um paraíso, transformou-se num cemitério de muitos e muitos sonhos não realizados.

“Êxodo” retrabalha fora, uma vez mais, o silêncio do seu “Em casa”. E, no desmontar simbólico do velho brinquedo (com os tacos sendo levantados numa reforma no novo espaço), representa-se a expulsão do sujeito para fora da própria casa. A viagem é engenhosa, pois a casa segue como reflexo da regressão sem rompimento algum com o passado. Não existe mais o olhar do menino-jovem, já envelhecido pela soma dos muitos fracassos. Produz-se então a indiferença como expressão de cansaços. O cansaço dos fantasmas da obediência, da mesmice e do absurdo. Mas não se usa a negatividade como justificativa, e sim como composição operística do silêncio interno do realizador influenciado por Ozu e Antonioni de “O eclipse”. Da novíssima geração, Ikeda é dos mais talentosos, ao lado de Ricardo Alves, Ícaro Lira, Daniel Tonacci, Lucas Parente, Pedro Asbeg, Iumie Watanabe, Joana Collier, Maithê e Secy Jannuzzi.

Marcelo Ikeda continua não explicando nada com o seu cinema-experimento. Nem mesmo a doce presença das crianças. E a pergunta que fica é: Se a natureza é tão bela porque somos tão infelizes? O que fizeram da sensibilidade e do humano? Curiosamente, o realizador substitui uma vez mais a palavra pelo silêncio. E quando mostra o uso baixo que se faz da palavra na TV, nos envergonha a todos. Mas não existe um processo de substituição de valores, e sim o de criar uma visão-pensada do que se vê. Ikeda utiliza o silêncio como metáfora da vergonha. É importante que o filme seja reflexo do realizador pois não é uma xaropada para o mercado de inutilidades, mas um uso-pensado do caráter melancólico do mundo dividido com todos.

A impressão que passa é de que nada mais nos faz rir ou sonhar. E entre objetos e o espaço somos apenas fantasmas em movimento. Ou seja, a viagem no caso se processa fora, mas não mais dentro do realizador. Não temos mais a capacidade do encantamento. O verde da natureza ou o azul do céu nos passam apenas a impressão de ausências. Exacerba-se com a potência de um estado de sensibilidade soturno. Nossa história do olhar é a história de uma grande tristeza onde o corpo ausente é ao mesmo tempo o corpo presente. Somos feitos de ausências e silêncios. Em “Êxodo”, Marcelo Ikeda pinta quadros do seu desencanto com a civilização do consumo de inutilidades. A última seqüência, genialmente montada, explica bem o filme todo, que de certo modo rompe com a sofisticação delicada do silêncio muito bem usado pela música dos irmãos Pretti. Ou seja, trabalha-se uma espécie sofrida de escultura do olhar. Olhar para fora o que está dentro: a cerimônia da solidão humana, desumanizada pelo progresso.

“Êxodo”, concluído depois do seu “Carta de um jovem suicida”, é de algum modo uma preparação para o curta rodado com Cristina Ache. Ou seja, o longa explica o curta pessimista concluído anteriormente. Ikeda doa-se ao sacrifício de se expor sem máscara alguma, tanto no curta como no longa. Indiferente à pobreza do cinema de mercado, avança com o seu cinema bressoniano. Um cinema sem fé na condição humana. O fim diante da TV chega às raias do traumático pois só se vê e ouve o lixo oficial podre, apodrecendo, e muitos já apodrecidos. O próprio realizador, incomodado diante do deserto eletrônico, recolhe-se, tenta ler um livro sobre a “Ética” e adormece. Seguro de que a idiotice dos nossos dias se repetirá por semanas, meses, anos... pois a sua traumática seqüência da TV está devidamente abençoada pelo poder. É o país que se tem, né?

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