O ÚLTIMO AZUL

 O ÚLTIMO AZUL

de Gabriel Mascaro

 


O Último azul vem sendo lido como uma espécie de boat movie. Um coming of age de uma idosa que se lança à estrada-mar para redescobrir o sentido de sua vida. Mas nada seria mais oposto ao caminho de Morangos Silvestres (Bergman, 1957): enquanto o nobre professor interpretado por Victor Sjostrom olha para trás, em que a estrada forma um espelho psicanalítico em que ele reinterpreta o abandono do passado, no filme de Mascaro, não há nenhum elemento de conexão da personagem ao passado, à sua trajetória pregressa e à sua família. Ela não olha para trás mas apenas para frente.

A subversiva Teresa busca escapar de seu destino. Como em A balada de Narayama (Imamura, 1983), os idosos são arrancados do convívio social e arremessados em um local longínquo, como um mero produto exaurido que agora deve ser descartado. No entanto, o japonês Imamura constroi uma fábula em que a idosa aceita ir para o monte, e se preocupa não apenas com seu destino individual mas com as repercussões de sua partida em sua família.

No filme de Mascaro, não. A família e a sociedade surgem como instâncias conservadoras que inibem a liberdade do indivíduo, e por isso devem ser abandonadas. Teresa rompe com a sociedade e se refugia no interior da floresta, onde busca abrigo. Ela então cruza com três personagens em seu caminho: o barqueiro interpretado por Rodrigo Santoro; o mecânico Adanilo e a cubana comerciante de bíblias virtuais vivida por Miriam Socorrás. Somente nessa última, Teresa encontra algum abrigo, uma empatia mais profunda e – talvez – a possibilidade de um porto seguro e de um amor.

Como em Boi Neon e Divino Amor, Mascaro realiza um filme provocativo em torno de personagens que buscam romper com o que o sistema espera deles. De alguma forma, esses personagens precisam romper com a tradição para que possam ser eles mesmos. Ao mesmo tempo, essa espécie de retrato social se transmuta numa fábula kitsch com certo tom alegórico e um sutil toque de ironia/humor.

Se Teresa abandona o sistema e se aproxima de uma constelação de párias, o filme não possui nenhum desejo de reação ou de organização coletiva contra o sistema. Teresa quer apenas ser esquecida e viver em paz.

Muito já se falou de O Último Azul como uma fábula que denuncia o etarismo e o abandono de idosos por um regime capitalista que expurga os corpos agora inúteis porque improdutivos para a máquina de reprodução do capital, cansados após uma vida dedicada ao trabalho. No entanto, o filme me interessa menos por esse enraizamento social e mais nos momentos sensórios em que o arremedo narrativo se dissolve em instantes de suspensão. Devemos lembrar que Mascaro tem uma trajetória também ligada às artes visuais.

São justamente nesses momentos de suspensão que Mascaro se aproxima do cinema de fluxo do início dos anos 2000. A imersão no universo amazônico e o fluxo d´água rendem momentos que reverberam instantes de filmes de Apichatpong Weerasethakul ou de Tsai Ming Liang: Rodrigo Santoro sentado num colchão de plástico ouvindo uma radiola digital; dois peixes luminosos encenando uma espécie de rinha num aquário de uma casa de apostas, como uma espécie de dança-voyeurística... ou ainda, o transe de Santoro com a substância alucinógena, seguida de uma bela sequência de decupagem entre os dois personagens como no melhor cinema de Claire Denis, em um Sábado à noite ou mesmo O intruso.

Me parece que justamente nesses instantes o filme abandona sua pretensão de fábula social e se deixa perder em deriva pelas pequenas delícias do caminho. Há quem diga que o caminho importa mais que o destino final – talvez essa seja a chave do desejo de deriva do cinema e da arte contemporâneos. Nesses breves momentos de epifania, o filme parece ser mais coerente com o próprio desejo dessa personagem, de romper com o sistema e mergulhar num processo de liberdade.

São justamente nesses momentos que senti que o filme foge de seu sentido moralizante totalizante e de sua vocação de aderência ao curcuito do world cinema internacionalizado. A Amazônia no filme surge muito mais como click bait para as plateias internacionalizadas do que um desejo de mergulho mais profundo nesse universo. A belíssima fotografia por vezes exagera numa plasticidade fotográfica sedutora para esse olhar estrangeiro codificado. Talvez esse seja o preço a se pagar para continuar filmando – diriam os mais pragmáticos. De todo modo, fico pensando na relação entre Teresa e Mascaro. Se Teresa tenta fugir das armadilhas conservadoras do sistema repressor, até que ponto Mascaro busca imergir ou escapar dos estereótipos do circuito internacionalizado do cinema de arte brasileiro, pronto para ser consumido por um público burguês europeu? É difícil dizer se Mascaro irá aceitar o seu destino ou fugir do que se espera dele. Em certos pontos, O último azul surge como uma fábula socialmente correta e comportada. Mas, por vezes, há algo que escapa, em torno de pequenos momentos de epifania, em que o prazer visual da contemplação (ou da alucinação) irrompe dos arremedos totalizantes. São esses momentos que permaneceram – pelo menos comigo – ao final da jornada de Teresa-Mascaro. (Esses momentos me aproximam justamente de alguns momentos de Ventos de agosto, um filme de transição na carreira de Mascaro, justamente entre o que o diretor “fazia” e o que “faz agora”.)

É esse gosto pelo presente e pela água que surge como mais potente do filme de Mascaro. Teresa não está preocupada com o que irá deixar mas com o que ainda pode fazer. É um filme sobre a potência do desejo, mesmo quando tudo parece dizer que se é tarde demais. A solidão de Teresa nos assombra e nos fascina, ao mesmo tempo que parece acenar para um país dividido, de esperanças partidas, que busca simplesmente sobreviver a cada dia, sem grandes planos de salvação ou de projetos coletivos. Fragmentado e elíptico, O último azul tem frustrado àqueles que esperam alguma tábua conclusiva ao final do filme: é de certa forma, melancólico e desesperançoso – o encontro entre as duas mulheres talvez alimente alguma chama diante da solidão, inevitável. Ainda que por vezes possa parecer ingênuo, como uma espécie de fábula. Fazendo uma homenagem a outra grande artista rebelde que esta semana nos deixou, é possível dizer sobre o pouco tempo que falta (a ela, a todos nós) que, sobre a vida, “só nos resta viver”.

 


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