[FESTBRASÍLIA] XINGU À MARGEM

 [COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025]

XINGU À MARGEM

de Arlete Juruna e Wallace Nogueira

 


           Esse documentário investiga a repercussão nas vidas de ribeirinhos, indígenas e beiradeiros a partir da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na região do Xingu, em torno de Altamira, no Pará.

O cinema militante brasileiro contemporâneo já possui uma longa linhagem, especialmente a partir de uma recuperação dos filmes desse escopo a partir de meados dos anos 2010. Lembro especialmente de um texto de Amaranta César problematizando o fato de que muitos filmes considerados militantes ficarem à margem das escritas canônicas do cinema e do circuito dos festivais. Houve, então, uma discussão sobre os cinemas a partir das minorias e dos oprimidos e de como o cinema pode ser um instrumento de luta.

Há uma vertente do cinema militante contemporâneo que associo a um “cinema de trincheira”. São filmes voltados ao calor do embate, registrando um direto enfrentamento, como Parque Oeste (Fabiana Assis, 2018), Ressurgentes (Dácia Ibiapina, 2014) ou Junho (João Wainer, 2014).

Outros filmes buscam uma outra abordagem dos movimentos de emancipação e de luta, com tempos mais alargados e a busca de uma linguagem mais poética. Entre nós talvez estejam multidões (Aiano Bemfica, Pedro Maia de Brito, 2020) talvez represente o epítome dessas tendências, ao conciliar procedimentos típicos de certo cinema contemporâneo brasileiro do chamado “cinema de afeto”, como Baronesa (Juliana Antunes, 2017) ou A vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014, entre diversos outros) com elementos típicos do cinema militante.

Xingu à margem aproxima-se mais dessa segunda tendência. Em vez de empunhar armas como instrumento de luta direta, o filme prefere investigar os impactos da construção da hidrelétrica no modo de ser das pessoas em seu entorno. Ele até mostra as questões macropolíticas mas sempre a partir das angústias, dos desafios e das necessidades do indivíduo.

Para um tema tão complexo e delicado, foi necessário mergulhar durante muito tempo nesse universo. Para que seja possível acessar camadas mais profundas de ecuta, é preciso conviver, estar ao lado durante muito tempo. Essa insistência na cumplicidade e na duração são muito visíveis nesse filme.

Seu grande mérito é sobretudo colocar-se em posição de escuta. Para além de meramente um filme-de-entrevistas a partir de talking heads, o filme vai desenvolvendo uma relação contínua de proximidade em relação à complexidade do universo retratado. No debate, o diretor Wallace Nogueira apresentou o filme como “o fruto de um bom encontro – em um mundo de hoje em que os bons encontros são cada vez mais raros”.

O filme não se apresenta como virtuoso em sua feição estética, mas suas opções, ainda que discretas, comprovam o amadurecimento do cinema militante brasileiro contemporâneo. O filme está longe de ser uma mera reportagem de denúncia, em que a direção simplesmente posiciona a câmera para os depoentes falarem. A sofisticação desse filme não está nos seus recursos estéticos ou técnicos (um movimento de câmera, uma lente, etc.) mas especialmente no modo ético em que o filme se coloca em posição de escuta – e como os diretores encontraram uma posição adequada para extrair daquele universo uma potência cinematográfica ainda que ancorada basicamente na oralidade.

Xingu à margem é um filme de escuta baseado na oralidade – abrindo um campo para a sabedoria popular. Ele é focado no impacto da hidrelétrica na vida das pessoas do entorno, em especial, os ribeirinhos, representados por uma liderança, Dona Raimunda. O filme se coloca nesse tempo de escuta ético necessário para vir à tona o processo pós-trauma, mas sem sensacionalismo nem chavões pré fabricados. A sabedoria de Sona Raimunda se resuma aos desafios de: persistir na luta; sobreviver com ternura; não adoecer.

Xingu à margem é uma análise humana sobre esses impactos nos modos de ser de oprimidos mas é também uma análise política complexa e corajosa, pois problematiza dois elementos: o governo federal do PT/Dilma e as comunidades indígenas. Tomando como base o ponto de vista dos ribeirinhos, o filme, de forma corajosa, contribui para uma maior reflexão sobre o abismo que nos separa da região Norte do país, e de como as grandes empresas privadas desenvolvem estratégicas corroboradas pelas instituições hegemônicas para esmagar comunidades em nome da ganância.

Há um conjunto de trechos comoventes. Dona Raimunda fala que no Brasil um papel vale mais do que o ser (a lógica cartorial em que a identidade ou a posse são estabelecidas por vias escriturárias-judiciais). Ou ainda quando ela conta que muitos ribeirinhos precisam vestir as roupas deixadas pela hidrelétrica, pois não tem mais o que vestir – e o filme mostra um plano das roupas secando no varal – um dos mais tocantes desse filme. Em outro, Dona Raimunda volta à sua antiga casa, agora um lugar-nenhum totalmente coberto pelo mato, apresentado em um grande plano geral.

Em outros momentos, percebemos que a história se repete. Os problemas sociais de Tucuruí foram amplificados em Belo Monte. Em um momento, um pescador, que agora precisou se voltar à colheita do cacau, mesmo com 70 anos, faz uma profecia: se a barragem (a mais mal feita em que já trabalhou) de Belo Monte estourar, será muito mais trágico que Mariana...

Xingu à margem é uma investigação sobre os impactos da construção de Belo Monte a partir das micropolíticas, vivendo com os supostos vencidos, aqueles que insistem em resistir. Apresenta um retrato humano e político, mas sem melodrama nem tampouco sensacionalismo. As discretas mas maduras opções de mise en scène apontam para o amadurecimento do cinema militante. A forma como o filme expõe os paradoxos de nossa esquerda e de grupos minoritários é corajosa. A delicadeza com que esse filme toca em diversas questões tão complexas de um Brasil profundo mostra a extrema importância do documentário brasileiro de invenção, que de fato se dedique a mergulhar nas questões políticas, humanas, geográficas de nosso país – que não possuem visibilidade na grande mídia e que ampliam as leituras mais tradicionais sobre os determinados assuntos. Por mais Xingus à margem no cinema brasileiro!!!!

 

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