[FESTBRASÍLIA] CORPO DA PAZ
[COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025]
CORPO DA PAZ
de Torquato Joel
Torquato Joel é um dos maiores
nomes de toda uma geração do cinema paraibano, que começou a fazer seus
primeiros curtas em 35mm na década de 1990, junto com Marcus Villar, entre alguns
outros. Dadas as descontinuidades das políticas públicas de incentivo ao cinema
brasileiro e à falta de apoio contínuo aos fundos de cinema, em especial em
estados de menor potencial financeiro, como a Paraíba, Joel – assim como outros
talentosos realizadores nordestinos – somente conseguiu realizar seu primeiro
longa-metragem na década de 2010, com Ambiente familiar (2018). Mas Joel não ficou parado ou se lamentando, mas continuou ativo,
no exercício de seu cinema possível, seja com diversos curtas-metragens (como o
excepcional Pulmão de Pedra [2023])
seja com um importantíssimo trabalho de formação, com cursos e laboratórios de
cinema no interior da Paraíba (projetos Viação Paraíba e Jabre), estreitando
laços com novas gerações do cinema paraibano.
Todo esse percurso se faz
presente em Corpo da Paz. Esse filme
parte de uma premissa sociopolítica original e instigante. Na década de 1960,
os Estados Unidos enviaram voluntários para atuar em países em desenvolvimento.
Esse programa foi um dos braços da Aliança para o Progresso, um programa criado
por JFK para promover o desenvolvimento econômico e social da América Latina e
conter o avanço do comunismo.
Joel reuniu esse fato com outro
acontecimento local. Na década de 1980, a praga do bicudo destruiu a plantação
de algodão, especialmente no interior da Paraíba, um dos maiores produtores do
país. Ainda que a comprovação não seja plena, as hipóteses hoje mais aceitas
pelos pesquisadores é que a praga tenha sido trazida por americanos, gerando um
grande declínio da produção algodoeira no Nordeste e em outros polos do Brasil.
Joel toma como ponto de partida esses
dois fatos históricos para promover uma curiosa ponte com o presente, num
momento em que nossa soberania nacional tem sido ameaçada, e que setores
brasileiros da extrema direita defendem uma aliança com a direita
norte-americana.
Dessa forma, sob o pano de fundo
da guerra fria, um pesquisador norte-americano chega ao sertão da Paraíba para
fazer pesquisas sobre a natureza local, supostamente para criar mecanismos de
auxílio a um país em desenvolvimento. Mas quando o pesquisador secretamente
espalha o pó que simboliza a praga pelas plantações de algodão, Joel está
querendo apontar para algo além: a pulverização de outros modos de ser, que
esmagam a natureza do interior brasileiro.
Mas o que mais surpreende é como
o filme mostra a presença desse estrangeiro: em vez de palavras de ordem e de
uma política didática, o filme provoca um estranhamento, pois nunca sabemos
muito bem as motivações desse estrangeiro, que permanece quase mudo, acontuado
pelo fato de não conhecer bem o Português. Corpo
da Paz é um filme lacunar, com amplas elipses, valorizadas pelo criativo
trabalho de montagem de Diego Benevides, que busca um distanciamento do
espectador por meio de um estilo rigoroso, quase minimalista, acentuado pela
belíssima fotografia em preto-e-branco de Rodolpho de Barros, com poucas
palavras, acentuado por um potente trabalho sonoro que complexifica essas
relações (a importância do desenho sonoro como elemento de dramaturgia é uma
vertente de toda a obra de Joel). A mise en scène nunca é meramente realista:
exemplo disso é quando o estrangeiro bate duas pedras em suas mãos, e o som vai
se amplificando, reverberando de formas misteriosas ao longo da paisagem do
amplo sertão.
Em paralelo a esse enredo, vemos
o cotidiano do menino Teobaldo, uma criança que vive em uma típica família do
interior paraibano: o pai, ausente; a mãe, reprimida pela Igreja. Teobaldo tem
seus desejos sexuais de autodescoberta do seu corpo reprimidos pela visão
tradicional da Igreja, que busca adestrar corpos e mentes. Ao mesmo tempo, tudo
se transforma quando seu irmão mais velho chega da cidade – e percebemos que o
irmão vem participando da luta política contra a ditadura. Joel, num recurso
autobiográfico, mostra como a praga do algodão não é suficiente para amordaçar
o potencial de um jovem comunista, que está ali a desabrochar. Ainda que o
algodão sucumba, há algo ali a desabrochar: o espírito de um jovem comunista. A
libderdade está na expansão do desejo de corpos e mentes, para além das instituições
repressoras (o estrangeirismo, a Igreja, a família).
A sequência final é bastante
sugestiva: o menino se vinga do americano plantando uma armadilha, em frente à
Igreja. Essa brincadeira de criança se torna uma aventura revolucionária. Vemos
a situação no extracampo, pelos olhos da criança. Teobaldo já pode brincar com
seu amigo e plantar armadilhas para o inimigo. E de repente o filme acaba,
deixando o espectador atônito. Alguns espectadores presentes se queixaram da
falta de um ato final que amarasse as duas pontas. Mas creio que o mérito do
filme é justamente esse: acabar o filme na tomada de consciência do menino, independentemente
do futuro desse americano. A atualidade dessa reflexão sobre o americanismo no
Brasil de hoje é surpreendente, uma vez que o projeto do filme foi amadurecido
durante muitos anos. A isso dá-se o nome de sincronicidade histórica.
A meu ver, apenas uma ressalva
mais direta: a cena em que Corpo da paz
retrata a tortura do estudante. Para um filme com tantas elipses e sutilezas,
creio ser desnecessária a cena em que a tortura é apresentada de forma
explícita. Pois acredito que o foco do filme não é a tortura, mas sim as
projeções da luta no imaginário do menino Teobaldo.
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