[FESTBRASÍLIA] FUTURO FUTURO
[COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025]
FUTURO FUTURO
de Davi Pretto
Último
filme a se apresentar nesta edição do Festival de Brasília, Futuro futuro, de Davi Pretto, é um
filme sobre alienação. O filme acompanha a jornada de K (Zé Maria Pescador), um
homem que desperta desmemoriado numa cidade suja e empobrecida. Acolhido apenas
por um trabalhador precarizado solitário (um clickworker interpretado por Castanha, que já havia protagonizado o
primeiro longa do diretor), K busca recuperar sua memória com a ajuda de uma
máquina chamada Oráculo. Os fragmentos de sua memória perdida surgem como
flashes de imagens produzidas por inteligência artificial.
Davi Pretto, com essa abordagem,
realiza uma ficção científica distópica que se alinha a uma tendência no cinema
contemporâneo, tanto global quanto brasileiro: o uso de elementos de gênero de
forma não convencional. O filme não adere plenamente às regras da ficção
científica tradicional, mas as utiliza como um ponto de partida para
deslocá-las para outro lugar e explorar algo mais ambíguo. O filme desloca as
características mais típicas do cinema fantástico para dar primazia à criação
de ambiências. Em vez de focar em uma narrativa de causa e efeito ou na
identificação com personagens com motivações claras e fortes, a obra valoriza a
atmosfera, os sentimentos e as sensações. Os elementos de ficção científica
servem para sugerir um universo onde a angústia e a desorientação são
palpáveis, mais do que uma história com um enredo linear.
O filme se torna, assim, um
cinema de atmosfera, onde a estética distópica surge como uma ferramenta para
investigar temas como a alienação e a crise de identidade, de uma forma que um
cinema puramente realista talvez não conseguisse.
A ambição política do filme, ao
explorar a alienação e a cisão do mundo contemporâneo, dialoga com o conceito
social de "cidade partida". Mas longe de qualquer didatismo ou
panfletarismo, a obra usa essa dicotomia como ponto de partida para mergulhar
em uma profunda angústia existencial, revelando a dúvida e o deslocamento de
seus personagens. Sua força reside em uma investigação puramente
cinematográfica, onde a potência da narrativa se manifesta em climas e
ambiências que evocam um cinema de busca e de deriva, recusando-se a oferecer
diagnósticos sociais simplistas ou respostas pré-fabricadas.
O filme de Pretto traduz a crise
cíclica do capitalismo mas não como uma tese ou um diagnóstico político-econômico, mas como um
profundo sentimento de crise humana e de identidade. Em vez de apresentar uma
tese fechada, a obra convida o espectador a compartilhar uma experiência íntima
de desorientação.
Essa abordagem se aproxima do
surrealismo, ao construir uma estética que espelha uma profunda desorientação
na organização dos sentidos, expressa por meio da ambiguidade entre o pessoal e
o social. A geografia da cidade é usada como espelho para a perda de sentido,
transformando a paisagem urbana em uma extensão da angústia interna dos
personagens. A desorientação aguda que o filme transmite não é apenas um tema,
mas um elemento central de sua linguagem visual e sonora.
Ao focar na dualidade entre o
lado pobre e o rico da cidade, o filme parece ratificar as dicotomias em torno
de uma cidade partida – uma cisão radical, em vez de uma contaminação entre
ambos os elementos no mesmo espaço. Essa escolha me fez lembrar do filme Miami, Cuba, de Caroline Oliveira,
curiosamente um documentário sobre João Pessoa.
Futuro Futuro pode ser interpretado como uma resposta indireta e
poética à tragédia das enchentes em Porto Alegre, mas o diretor, ao recusar a
abordagem documental direta, nos oferece uma reflexão crucial sobre como o
cinema lida com a dor e a catástrofe. Na coletiva de imprensa em Brasília, ao
afirmar que nunca poderia filmar um documentário sobre as enchentes por se
tratar de "imagens abjetas", ele revela sua preferência por um tipo
de cinema que não busca o didatismo ou o choque, mas sim a tradução de um
sentimento de crise. O filme, assim, não documenta as enchentes, mas o estado
de espírito que elas produziriam.
O uso de imagens geradas por
inteligência artificial em Futuro Futuro
é, de fato, um dos pontos mais intrigantes do filme. Elas não são apenas um
recurso técnico, mas servem a um propósito narrativo e crítico, ligando o
passado ao futuro em uma estética que evoca a publicidade.
Essas imagens de IA se
assemelham a maquetes digitais e renders arquitetônicos de autocad, como se
fossem protótipos de uma utopia de "Dubai no Terceiro Mundo". Elas
refletem a aspiração de uma classe média que busca um modo de vida isolado e
asséptico, totalmente dissociado da "rotina encantadora das ruas".
O filme sugere que essa classe
social vê na tecnologia, e especificamente na IA, não apenas um avanço, mas um
projeto glamouroso de distinção. A IA não cria imagens de um futuro coletivo ou
de uma comunidade, mas um espaço higienizado e despersonalizado, reforçando a
ideia de que a tecnologia, nesse contexto, serve para construir bolhas e
acentuar a separação social.
Assim, o filme de Pretto não
apenas explora a crise de identidade, mas também a crise do desejo, mostrando
como a tecnologia e a estética publicitária se unem para projetar um futuro de
isolamento e exclusividade, longe de qualquer utopia.
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