[FESTBRASÍLIA] AQUI NÃO ENTRA LUZ

[COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025] 

AQUI NÃO ENTRA LUZ

de Karol Maia

 


Esse longa documentário investiga as memórias de empregadas domésticas em diversos estados do Brasil, percorrendo rastros da escravidão no cotidiano das famílias brasileiras. Trata-se, portanto, de um tema social bastante atual e extremamente relevante para compreendermos as contradições dos processos sociais brasileiros e as relações de exploração dos regimes de trabalho. As domésticas muitas vezes são tratadas “como se” fossem da família – e o problema está justamente no mascaramento desse hiato, uma retórica que oculta um regime de opressão.

Essa situação ainda ganha outro desdobramento quando percebemos que a realizadora Karol Maia é filha de uma doméstica: trata-se de um filme em primeira pessoa, em que a filha procura fazer o filme para também convencer sua mãe de que deve participar, e como processo de reconhecimento de sua origem.

O mote desse filme me lembra de outro documentário brasileiro: Domésticas (2012), de Gabriel Mascaro. No entanto, há uma diferença: Mascaro apresentava o tema a partir de um dispositivo. As imagens não foram gravadas pela equipe do realizador mas pelos filhos das domésticas. Dessa forma, e também pelas grandes diferenças entre as domésticas escolhidas, Mascaro compõe um painel complexo das relações sociais brasileiras, em que a linguagem escolhida potencializava a complexidade dessas relações.

E daí reside a principal diferença para a empreitada de Maia. Ainda que seu tema seja relevante e as mulheres escolhidas apresentem dramas e condições de vida tocantes, a linguagem escolhida não proporciona um maior aprofundamento em um tema tão complexo, de modo que o filme permanece sobre certa platitude, inclusive numa instância um tanto reiterativa.

Sabemos que, de fato, o trabalho doméstico feminino é uma extensão do regime escravocrata, e das enormes perversões dos patrões que esmagam sua liberdade. Mas o que fazer diante disso? O que o cinema pode diante da opressão das minorias? Colocar as mulheres para descrever as situações vexatórias, os momentos de assédio moral e as relações de apagamento por meio do relato oral é o suficiente?

Sinto falta de um imaginário mais potente dessas mulheres, que possa reverberar suas memórias e seus desejos para além da clausura do trabalho doméstico. Quase todas a mulheres falam no interior de casas, como se ainda estivessem aprisionadas diante dessa realidade esmagadora. Os depoimentos das mulheres se concentram excessivamente no martírio do passado e não em um projeto de libertação e de desejo projetado para o futuro.

Exemplo sintomático dessa opção está na sequência final, em que finalmente mãe e filha contracenam – sendo a filha a própria diretora. Mas como a filha escolheu representar a mãe? Relatando como quando ela trabalhava como faxineira. Ou ainda, percebemos que a mãe resolveu participar do filme não para examinar seus desejos e sua potência como mulher mas principalmente para ajudar a filha a acabar o filme. A mãe sofre ao ver a sua filha sofrendo – e, com isso, essa mulher tem sua subjetitividade e desejos encobertos por um dever moral ligado à família.

Ainda que bem intencionado e tocante, Aqui não entra luz me parece infelizmente muitas vezes ingênuo para “jogar luz” nos complexos processos de relações de subalternidade do trabalho contemporâneo e de achatamento dos imaginários femininos. Corrobora o fato de que as domésticas sofreram abusos das patroas, mas essas continuam incólumes no longínquo contracampo – sem oferecer qualquer “luz” ao imaginário desejante daquelas mulheres.

Ainda não entra luz muitas vezes é montado para nossa comoção. Brecht defendia que a arte política não deveria provocar simplesmente a comoção do espectador, pois a catarse pode soar como um mecanismo conservador que afasta o espectador do pensamento crítico. Isso me parece um risco grave, especialmente no atual contexto político brasileiro, extremamente autoritário e perverso. Precisamos de narrativas mais potentes para dar conta de nossas contradições como sociedade.

 

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