[FESTBRASÍLIA] QUATRO MENINAS
[COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025]
QUATRO MENINAS
de Karen Suzane
Primeiro
longa-metragem da realizadora Karen Suzane, Quatro
Meninas parte de uma premissa promissora. Passado num Brasil
pré-escravidão, quatro jovens negras buscam fugir de uma espécie de internato.
Quando outras quatro jovens brancas descobrem o plano, elas optam por
acompanhá-las. Boa parte do filme transcorre nessa travessia, em que as oito
meninas precisam se integrar em conjunto para buscar suas liberdades. No
entanto, enfrentam preconceitos arraigados, associados à suas classes sociais e
especialmente à sua cor. Por esse mote, Quatro
Meninas pode ser lido como uma espécie de coming of age, uma jornada de amadurecimento de personagens jovens
em busca de sua liberdade e de suas identidades sociais. Em torno dessa
jornada, estão os sonhos de jovens mulheres que precisam lidar com suas
diferenças estruturais para, juntas, construir um caminho possível.
Ainda,
o filme possui um extraordinário trabalho de direção de arte, chefiado por
Ananias de Caldas, com ótima recriação do ambiente de época, e formidáveis
figurinos, adequados à cena. É nítida a atenção da mise en scène aos pormenores
e aos detalhes de um filme de época.
No entanto, apesar da potência
da premissa apresentada, Quatro meninas
desaponta por manter a jornada existencial do grupo de oito personagens apenas
em uma camada de superfície, sem maiores profundidades. O maior confito surge
quando as meninas negras se recusam a servir as brancas, o que gera revolta e
um amplo embate, quase corporal, sobre as posições de classe. No entanto, esses
dilemas não chegam a de fato ter desdobramentos mais potentes. A maior parte
das personagens surge apenas de forma decorativa, sem que seus desejos ou seus
universos interiores sejam desvelados. O filme permanece numa certa platitude
na investigação da potência do desejo dessas personagens, ou mesmo nos
conflitos e nas diferenças entre elas. Os diálogos muitas vezes soam por demais
literários ou ainda literais, dificultando a adesão por parte do espectador. Os
caçadores que vão atrás das frágeis meninas simplesmente somem no meio do
filme.
As opções de mise en scène
sempre contribuem para domesticar os supostos conflitos ou desdobramentos, que
nunca irrompem para além de uma platitude, exposta na beleza pictórica dos
planos, objetos e adereços. Essa ênfase no adereço em vez da densidade da trama
ou dos conflitos internos é, a meu ver, o mais forte elemento que aponta para o
fato de que no fundo, infelizmente, esse filme feminino libertário, é no fundo
extremamente conservador.
Se as personagens movem esforços
para sair da casa-grande, em nenhum momento, em nenhum plano, a diretora e a
equipe do filme se esforçam para sair da casa-grande do cinema. O filme não
está do lado das personagens em romper com o sistema e buscar sua liberdade
mas, ao contrário, parece preso a uma redoma em torno de sua autolegitimação a
partir de pressupostos de premissa que estão por trás da materialidade do filme
em si, apenas no campo das intenções. É como se a mise en scéne do filme e sua
institucionalização sem conflitos soasse como se o filme estivesse no fundo do
lado dos patrões, ou, na melhor das hipóteses, do lado das mimadas meninas
brancas, que permanecem no fundo esperando que continuem a ser servidas.
O desfecho é ainda mais problemático,
propondo uma aliança sem conflitos entre as oito meninas, quando elas se dão as
mãos, numa espécie de ciranda conciliatória. De forma pura e idealizada, Quatro meninas não se difere muito de O guarani, de José de Alencar, quando no
seu clássico final, Peri e Ceci partem juntos na jangada, enquanto a natureza
se inunda e a velha fazenda desaparece sob as águas. Esse drama romântico
alencarino é encenado como se fosse uma versão de Éramos seis, aos moldes de uma telenovela das seis. Agora, claro,
adaptado às contingências dos novos tempos do cinema brasileiro, com robustos
valores de produção, coprodução internacional e adesão ao cinema feminista
negro.
Não precisa ter lugar de fala
mas apenas bom senso para afirmar que mulheres negras que rompem com o sistema
em torno da sua liberdade e de suas ancentralidades merecem uma narrativa
melhor, que examine de forma mais profunda suas identidades e que desmascare de
forma mais radical as hipocrisias de uma sociedade branca e conservadora.
Optando pelo adereço de relicário, domesticando e apaziguando os conflitos, infelizmente
não foi o caso de Quatro meninas.
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