[Tiradentes2022] Ventos de Valls
MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES 2022
MOSTRA RETROSPECTIVA 25 ANOS
VENTOS
DE VALLS
de
Pablo Lobato
Ventos de Valls é um entre os títulos da Mostra 25 anos que ilumina
certos aspectos bastante em voga no cinema brasileiro de meados dos anos 2000
mas ao mesmo tempo trata-se de um filme muito pouco exibido. Na ocasião de sua
estreia da Mostra, na edição de 2013, seu diretor, Pablo Lobato, era um dos
membros da Teia, coletivo mineiro que está entre os mais importantes nesse
movimento de renovação do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 2000,
com filmes de fundamental importância nesse contexto, como O céu sobre os ombros, de Sérgio Borges, e Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. Lobato já
havia realizado, junto com Cao Guimarães, o belíssimo Acidente, fruto do edital DOCTV. Ainda, Lobato possui uma
trajetória artística com uma forte relação de trânsito entre o cinema e as
artes visuais. Ventos de Valls foi
fruto de uma bolsa da Fundação Guggenheim para desenvolver uma pesquisa em
aberto. Assim, Lobato viajou com sua esposa e filha para uma região no interior
da Catalunha, na Espanha, em que seis irmãos, parentes de sua esposa,
reencontravam a casa em que moravam quando crianças, e que tiveram que fugir da
ditadura de Franco, emigrando para o Brasil, mais precisamente para Resplendor,
no interior de Minas Gerais.
Ao
chegar a Valls para descobrir o que filmar, Lobato percebeu que essa própria
viagem era o filme. Ou seja, Lobato filma o reencontro dessa família com sua
identidade local, algo que me faz lembrar, a grosso modo, do belo gesto de
Jonas Mekas em Reminiscências de uma
viagem a Lituânia. Os irmãos, já idosos, agora reunidos, relembram os
acontecimentos da infância, anotam as músicas que os aqueciam, caminham pelos
arredores da casa, cobertos pelo mato. Ventos
de Valls se constrói assim sem roteiro ou estrita pesquisa prévia, menos
preocupado com informações sobre o contexto político ou histórico da imigração
ou da ditadura franquista mas mais voltado a mergulhar nas possibilidades desse
encontro com o presente e com a materialidade da casa, em despertar uma
sensibilidade sobre esse reencontro sentido no presente, mas que, ao mesmo
tempo, resgata um passado e uma memória distantes, que teimam em não serem
apagadas, reduzindo essas distâncias.
Valls é um documentário contemporâneo não apenas por esse gosto pelo
processo e pelas micropolíticas, mas por esse delicado ponto de vista que
imbrica a primeira e a terceira pessoa. Lobato é, de certa forma, um
estrangeiro a filmar essa família reunida. As memórias não são as dele. No
entanto, ele está fortemente imbricado no filme, não apenas porque trata-se da
família de sua esposa mas porque Lobato propõe uma ponte entre o sentimento de
retorno dessa família de irmãos com a descoberta de um mundo pela sua filha de
Ana, ainda criança, com cerca de 4 ou 5 anos. Entre essa família que é outra
mas também que é a dele, entre esse país estrangeiro, Lobato transmite ao
espectador essa posição delicada que é tentar retornar a um lugar que nunca se
foi. Assim, vejo Vento de Valls como um filme de aventuras, porque esse lugar
para o qual esses idosos retornam é um lugar outro, cujo vazio e silêncio
precisam ser preenchidos por suas memórias. Se esses velhos “voltam a ser
crianças”, com suas brincadeiras, jogos, andanças, de outro lado, existe Ana, a
filha do realizador. Esse passado e futuro convivem a partir do presente e da
materialidade da casa e da câmera do realizador, cuja posição está nesse
equilíbrio precário entre a primeira e a terceira pessoa. Essa é a poética de Ventos de Valls. Ainda são muitos os
preconceitos em torno do “filme de família” e o “documentário de busca”. Mas
para os que possam rotular o filme como meramente autocentrado em torno de uma
simples viagem familiar, melhor resposta é a bonita sequência em que todos vão
à praça principal da cidade assistir a uma tradicional apresentação, em que
grupos de pessoas formam pirâmides humanas, entre homens e mulheres, crianças,
adultos e idosos, vendo quem chega mais alto, quem resiste mais. As mãos e
corpos das pessoas que formam esse espaço de comunhão e de prosseguimento das
tradições simbólicas do local são entrecruzados pelos corpos e olhos do público
que se aglomera em torno do local. O indivíduo, a família e o coletivo se
entrecruzam por meio dessa apresentação, que é também, assim como o cinema, uma
forma de cultura e de arte.
Mas
o cinema brasileiro é um campo de batalhas, e naquele momento de 2013
interessava a alguns críticos tentar rotular uma certa produção do cinema
brasileiro, apontando para um suposto esgotamento do cinema em primeira pessoa
e dessa poesia do comum e da rarefação. Entre outros veículos, especialmente a
Revista Cinética, bastante influente no momento, já havia escrito outros textos
e artigos problematizando a produção da Teia como um todo, e de alguns filmes
em particular. Entre eles, destaco um texto bastante duro sobre Notas
Flanantes, de Clarissa Campolina, ou ainda um artigo sobre uma retrospectiva da
Teia no Cine BH. No ano anterior da Aurora, Balança
mas não cai, de Leonardo Barcelos, parecia ser um alvo fácil nesse discurso
do suposto esgotamento de certos recursos estilísticos oriundos da videoarte.
Entendo que esse debate provocativo certamente foi bastante importante para
desestabilizar a conformação de certos conceitos que já estavam quase
engessados ou automatizados como construção simbólica de um “novíssimo cinema
brasileiro” (especialmente uma certa ideia de “cinema poético”). No entanto,
visto de hoje, também é importante perceber como esses discursos são elementos
discursivos em torno das disputas de poder no interior do campo simbólico do
cinema brasileiro, em que a legitimação da Teia e especialmente as heranças de
certo cinema poético mineiro oriundo da videoarte começavam a ser problematizados
por uma outra geração de cineastas mineiros, tão talentosos quanto a Teia, que
surgiam com outros regimes de imagens e de modos de ser, e que também
disputavam seu espaço, entre os quais estão a Filmes de Plástico e o cinema de
Affonso Uchoa, entre outros diversos realizadores, como Leo Pyrata, Flavio
Sperling, João Toledo, Leonardo Amaral, entre muitos outros.
Ainda
que tenha recebido o prêmio principal da Mostra Tiradentes Edição São Paulo, Ventos de Valls permaneceu muito pouco
visto desde então. Essa é então uma rara oportunidade para que um novo público
possa assistir esse filme com “olhos livres”, reavaliando a fortuna crítica
sobre esse filme. O filme de Pablo Lobato aponta para a contribuição da Teia
nesse cenário de renovação do cinema brasileiro a partir de meados dos anos
2000 e sua íntima relação com toda a tradição da videoarte mineira, mas levada
para um outro lugar, com um diálogo com um cinema contemporâneo internacional.
Quando cheguei a Mostra de Tiradentes naquele ano de 2013, Ventos de Valls já havia sido exibido, e só puder ouvir os
comentários a partir de terceiros, não tendo nenhuma outra oportunidade para
ver o filme. Quase 10 anos depois, pude finalmente agora vê-lo e fui
surpreendentemente tocado por esse vento desse lugar tão distante que se tornou
um pouco mais próximo de mim.
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