[Tiradentes2022] A colônia
MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
MOSTRA AURORA
A COLÔNIA
de Mozart Freire e Virgínia Pinho
A colônia
surge, a princípio, como um documentário sobre a Colônia Antônio Justa, criada
em 1942 como retiro compulsório para o tratamento da hanseníase. O filme,
portanto, poderia ser visto como um documentário social que joga luz para um
contexto pouco conhecido da história do Ceará, relativo aos preconceitos em
torno da doença e os efeitos nocivos do tratamento e do confinamento dos
pacientes, fruto da estigmatização perniciosa da doença.
No entanto, com exceção das imagens de arquivo que
abrem o filme, descrevendo a arquitetura da pequena cidade (a colônia)
construída quase como um protótipo de um campo de concentração, o filme opta
por apresentar essa questão não por meio de um recorte estritamente
historiográfico, mas sim por examinar os resquícios da Colônia nos dias de
hoje, seja em relação aos pacientes que ainda habitam o local seja quanto aos
impactos provocados na própria cidade.
Por esse desejo de despertar uma reflexão crítica
para um aspecto histórico de confinamento no interior do Ceará, A colônia dialoga implicitamente com
outro filme cearense lançado em 2019: Currais,
de Sabrina Aguiar e David Aguiar, que também estreou na Mostra de Tiradentes,
ainda que na Olhos Livres, e não na Mostra Aurora. Ambos os filmes optam por
uma abordagem que utiliza estratégias ficcionais combinadas com os aspectos
documentais. No entanto, em Currais, também dirigido por uma dupla de
diretores, o protagonista é um ator profissional (Rômulo Braga) que atua como
um visitante que dispara as memórias do passado em contato com os moradores
locais.
Já A colônia
estrutura sua narrativa ficcional com a presença de atores não profissionais,
por meio das próprias pessoas do local. Assim, impressiona a leveza e a
espontaneidade da mise en scène proposta pelos dois diretores para conduzir os
personagens. Nesse sentido, os momentos mais potentes de A colônia são curiosamente os mais próximos da camada ficcional, ou
ainda, aqueles em que o contexto social-político da colônia não se faz tão
explícito. Duas funcionárias conversando sobre o café da manhã; um grupo que
toma cerveja num bar local; um almoço de família; uma mulher que pergunta ao
amigo como era aquele local anos atrás. Essas sequências, resolvidas em geral
por um único plano-sequência de câmera parada, impressionam pela espontaneidade
como os diretores utilizaram os não atores para expressar seus modos de ser,
por meio dos gestos e tempos, os acentos e entonações tipicamente cearenses que
exprimem um certo humor local. Nesses momentos, fica claro como os diretores
estavam fortemente integrados aos personagens e como encontraram uma forma
fílmica adequada para se aproximar deles, o que considero o maior dos méritos
do filme. Ao mesmo tempo, é curioso optar, em diversos momentos, por um tom
mais leve e prosaico para retratar um contexto social de vulnerabilidade.
Em outros momentos em que o filme se aproxima mais
firmemente do documentário e procura apresentar de forma mais linear o terrível
drama da Colônia, o filme cai de ritmo, pela dificuldade de a direção conseguir
fundir as duas abordagens de uma maneira mais orgânica. Um exemplo é quando uma
funcionária apresenta para a câmera os cômodos da Colônia. Quanto aos graves
impactos sociais tanto dos resquícios da Colônia quanto dos desequilíbrios da
região de Maracanaú, A Colônia apresenta
uma abordagem um tanto tímida para desvelar de forma mais contundente as
distorções e a desigualdade da região.
Momento também forte do filme que deve ser destacado
é o atendimento das enfermeiras com as pacientes, alguns deles afetuosos e
outros mais violentos, como uma senhora que tem dificuldade em dar as mãos e
retribuir afeto, numa das mais impactantes cenas do filme.
A Colônia
também revela o grande mérito de dar a ver a cidade de Maracanaú, pouquíssimo
filmada no conjunto do cinema cearense. Os desequilíbrios quanto à expansão da
área da Colônia por meio de ocupações irregulares e a inclinação do poder
público em soterrar aquele vasto espaço, incrustado como uma certa cicatriz
diante de um passado que se quer esquecer, trazem um debate sobre a questão
urbana numa cidade da Região Metropolitana de Fortaleza, cujas imagens e modos
de ser quase nunca receberam atenção pelo cinema cearense. Ainda assim, é
curioso como A Colônia não se trata
propriamente de um filme de denúncia mas precisa concentrar sua atenção para
pessoas que buscam reconstruir suas vidas ainda assim, especialmente uma jovem
que procura uma nova casa na região. O contraste com o Cave Park, grande parque
aquático construído recentemente na região, é sugerido, mas não propriamente aprofundado
pelo filme. Ao final, sentimos que a contribuição de A Colônia é servir como um ponto de partida para determinadas
questões mas que poderiam ser desdobradas por um maior aprofundamento. O
dispositivo das conversas informais, se bastante bem realizado
cinematograficamente, acabou jogando o filme para uma certa zona de conforto em
torno das dramaturgias do comum, afastando o filme de um embate mais frontal
com a dureza de seu entorno e o próprio abandono da Colônia.
Por fim, é belo ver esse filme realizado por uma
dupla de ex-alunos egressos da Vila das Artes, importante espaço de formação
gerido pela Prefeitura de Fortaleza, lugar que gerou tantos outros artistas e
realizadores de Fortaleza, como os do Coletivo Alumbramento, em sua primeira
turma, entre inúmeros outros. É importante ver que a Escola de Audiovisual
permanece viva e reverberando frutos que honram a tradição dessa casa em
revelar talentos do audiovisual cearense. A
colônia, assim como Currais,
jogam luz para outros aspectos da história cearense, e o fazem com um desejo
bem contemporâneo de combinar aspectos ligados ao documentário e a ficção,
trazendo também interesse nos modos como a linguagem do cinema pode dar a ver
questões sociais.
Comentários