(IFFR2022) Paixões recorrentes
COBERTURA DO FESTIVAL DE CINEMA DE ROTERDÃ (IFFR2022)
PAIXÕES RECORRENTES
de Ana Carolina Teixeira Soares (Brasil, 2022, 94
min)
Mostra Harbour
Em
suas últimas edições, o Festival de Roterdã tem bem acolhido nossos cineastas
que possuem uma longa trajetória consolidada, ligada ao cinema de invenção: em
2020, Ruy Guerra apresentou seu Aos pedaços
e, no ano passado, Julio Bressane, exibiu Capitue o Capítulo. Este ano foi a vez de Ana Carolina Teixeira Soares e seu
misterioso Paixões recorrentes.
Me
interesso por aproximar esses três filmes, de realizadores com trajetórias tão
diferentes mas ao mesmo tempo próximas nesse gesto provocativo de pensar o
Brasil por meio de uma linguagem radicalmente oposta às convenções do cinema
narrativo comercial.
Ao mesmo tempo, são três realizadores
que vivem em um certo isolamento. Esses três filmes são exercícios radicais de
personagens que se encapsulam. São filmes quase fechados por dentro,
encapsulados em torno das obsessões criativas de seus diretores, mas com pouco
diálogo entre as tendências estilísticas do cinema contemporâneo brasileiro ou
mundial.
Alguém poderia dizer que são
filmes voltados para dentro do universo próprio de seus realizadores e que dão
as costas ao mundo. Mas as relações entre estética e política muitas vezes são
misteriosas, de modo que há mais coisas entre o céu e a terra que a vã
filosofia do reino da Dinamarca poderia suspeitar.
Essa ambiguidade me parece ser o
cerne desse projeto arriscado de Ana Carolina. O filme aparenta ser um huis clos teatral (apesar de ser filmado
numa praia aberta) em que personagens-tipo discutem num pequeno bar numa ilha
isolada do mundo, as tendências políticas entre a esquerda e a direita.
Exilados, voluntariamente ou não,
nesta ilha, os personagens não tem muito a fazer. Então só lhes resta jogar
conversa fora. Mas não se trata da dúvida ética exposta por Godard em Os carabineiros/Tempo de guerra (1963), entre o “tempo da reflexão” e o “tempo da
ação”. O filme possui uma veia tragicômica mezzo alegórica, própria da
diretora, em que, num grande caldeirão, esse grupo, composto por personagens
humanos com todas as suas dúvidas, vilanias e fraquezas, é assolado pela sombra
do fracasso.
Ao mesmo tempo, é claro o desejo
da realizadora de transcender a estrutura psicológica, e forjar personagens-tipo
que espelham um certo microcosmo do Brasil. Os personagens interessam menos em
sua psicologia e mais para os seus tipos: a francesa comunista, o negro
brasileiro anarquista, o pequeno comerciante brasileiro integralista, o
empresário liberal, o argentino policial comunista, o português salazarista,
etc.
Em grande parte do filme, esses
personagens conversam nesse bar enquanto como mero passatempo, esperando por algo
que eles não sabem bem o que é. Algumas subtramas se arremedam, como um
português que vai à ilha em busca de sua amada, uma francesa artista com seus
projetos de fama no teatro e seus conflitos com um empresário oportunista, um
policial besta-fera que ameaça os visitantes, o roubo dos colares, etc. No
entanto, Ana Carolina parece mais à vontade em destilar os diálogos dos
personagens no bar. Suas origens são distintas, de modo que o filme é falado em
várias línguas (francês, espanhol, português de Portugal e português
brasileiro), ainda que todos se entendam. A influência estrangeira na formação
da identidade brasileira dialoga com outros trabalhos da realizadora, como Amélia (2000). As posições políticas
também são distintas, num amplo espectro entre a direita e a esquerda. Nesse
bar isolado, integralistas, comunistas, liberais, anarquistas dividem a mesma
garrafa de aguardente. Esse convívio pacífico, essa certa cordialidade, mascara
as tensões, as opressões e os poderes locais.
Esse é o teatro Brasil, numa
ilha longínqua (a Ilha do Mel, mas que bem poderia ser a Ilha de Vera Cruz, berço
mítico da origem brasileira). Os personagens recitam seus frágeis papeis de
personagens-tipo nesse grande palco de teatro de comédia de costumes. A
estética teatral de Paixões recorrentes
parece ser, um pouco a grosso modo, como Os
inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, um modo de expor o
comportamento dos personagens como um deslocamento do mundo.
Enquanto isso, tudo parece estar
próximo a explodir. Ao final, a cineasta revela que desponta a Segunda Guerra
Mundial. Lembramos que a política vem da origem do cinema de Ana Carolina,
quando realizou o documentário Getúlio
Vargas (1974) – o estadista é citado longamente em uma dessas conversas,
com os personagens já bêbados. Parece claro que a realizadora procura sugerir
um possível paralelo com o atual momento político do mundo mas especialmente no
Brasil em que os totalitarismos ressurgem. Ao mesmo tempo, parece ser muito
confortável que esse grande microcosmo do Brasil seja encenado em plena
paradisíaca Ilha do Mel, como um huis
clos teatral em que uma equipe veterana filma como se num grande resort. Meu
interesse por Paixões recorrentes surge a partir desses paradoxos, por uma
cineasta que sempre viveu nesse entremeio entre o Cinema Novo e o Cinema
Marginal: uma vontade imensa de falar sobre a identidade de um país mas
desconstruindo os discursos narrativos, ainda que com uma proposta de um cinema
moderno. Há um nítido desejo de cinema, em como a decupagem procura criar
ritmos e climas mesmo dentro da aparentemente limitada estrutura semiteatral. O
clima farsesco e de mosaico impelem a identificação do espectador com os
personagens. Nesse teatro farsesco político, o Brasil é a resultante desigual
desse caldeirão de culturas que não converge para um projeto comum, mas para
suas contradições e vilanias. E que no fundo apontam para um grande
esvaziamento e uma profunda solidão. Solidão essa que se expressa no próprio
cinema de Ana Carolina e da relação de sua proposta de mise en scène com o
mundo. Paixões recorrentes é um filme estimulante, que merece uma melhor
revisão fora da maratona de um festival internacional. Mas, após essa primeira
visão, resta a pergunta: como é possível que um teatro farsesco político não
caia nas armadilhas do ensimesmamento e possa abraçar de fato o mundo, com suas
imperfeições mas com suas belezas?
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