[Tiradentes2022] EXTREMO OCIDENTE

MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES 2022

 

EXTREMO OCIDENTE

de João Pedro Faro

 



Um dos filmes mais radicais e contundentes exibidos nessa edição de Mostra de Cinema de Tiradentes foi Extremo Ocidente, de João Pedro Faro. Me parece que esse foi o filme que melhor encontrou uma forma cinematográfica para expressar, de modos mais complexos e misteriosos, o sentimento de crise em que estamos imersos, por meio de uma profunda desorientação de seus sentidos. A crise, portanto, está plenamente infiltrada pelos poros do filme (um digital de baixa resolução), expressa pela ausência de respostas ou fórmulas prontas, por meio de sua dilaceração e seu desespero.

Esse desespero também se expressa pela opção em fazer um cinema possível, assumidamente pobre e imperfeito (pobre nos termos do teatro de Grotowski e imperfeito segundo García Espinosa), tornando sua suposta precariedade uma potência. Um cinema urgente realizado a partir de sua profunda pobreza.

Nesse sentido, Faro claramente dialoga com elementos do chamado cinema marginal brasileiro, ou cinema mangue bangue, como ele mesmo faz questão de afirmar em seus créditos iniciais, uma referência ao filme de 1971 de Neville D´Almeida. Os diálogos com esse cinema podem ser vistos não apenas por elementos estilísticos, como a dilaceração dos personagens, a ausência de teleologia, o lixo e o abjeto, a incorporação criativa de elementos da cultura popular midiáticas, consideradas por um discurso elitista como menor (nesse caso, também incorpora o cinema trash), etc, mas especialmente por uma forma ética de fazer cinema, em que expressa a sua total recusa do mercado e do diálogo com o público consumidor, além da rejeição dos padrões mais consolidados do circuito de prestígio artístico.

É por meio dessa total solidão e pela recusa desses lugares mais típicos de consolidação do jovem artista que vejo a contribuição da filmografia de Faro. Seus filmes desenvolvem uma poética muito particular em torno do desafio de uma geração de jovens que deambulam sem nenhuma perspectiva. No entanto, seu cinema, de base materialista, é mais próximo ao niilismo e ao anarquismo do que do existencialismo ou do formalismo. No anterior Sombra (2021) e neste Extremo Ocidente (2022), Faro vem, portanto, desenvolvendo essa poética (me interesso em pensar o cinema de Faro a partir da busca por uma poética), expressa por essa dilaceração e por esse desespero a princípio controlado em silêncio e inércia e que, ao final, explode em movimento de violência. Um soldado confinado resolve perambular solitário a céu aberto, visita um companheiro em busca de refeição, e depois é devorado por um canibal, anunciado desde a primeira cartela do filme. Ele escreve uma carta de suicídio, mas fracassa. Ele se alimenta, mas seu estômago dói. Ele caminha a céu aberto mas não encontra nem amigos nem inimigos. O mundo se apresenta em lixo e ruínas mas também há o céu azul e o mar. O protagonista cumpre sua missão sem sentido, não encontra nem beleza nem feiúra nesse mundo que o circula. Não há identificação: ao final, não sabemos se o soldado deve ser condenado ou não, bem como o canibal. Trata-se de um filme sobre a liberdade como condição imanente mas também como prisão. Não se pode julgar as ações dos personagens pelos requisitos morais tradicionais, aos moldes de O Anjo Nasceu (1969). Mas não há gritos, apenas o silêncio. As paisagens são mero tableau em que ele não se insere (um filme em cenários reais como se fosse em chroma-key, um Paisà filmado pela Boca do Lixo como gore exploitation, um cruzamento entre Bressane e Baiestorff). O filme tampouco tem uma estética realista. O início no calabouço sombrio possui uma influência expressionista, trabalhada com uma única lâmpada local. As roupas e armas do protagonista passam um look caricato, quase como um pastiche de si, de uma loja de brinquedos. Da mesma forma, é encenado o encontro com o companheiro local, que faz “shurrasco” de cachorro. Como diria uma música popular, “nem desistir nem tentar. Agora tanto faz.”. Os filmes do Faro me lembram das primeiras experiências em longa-metragem dos Irmãos Pretti, em que eles refletiam sobre como fazer nada e como expressar o silêncio (no caso da proposta de erudição dos gêmeos, dialogando com ee cummings e Cage). Se não há nada a se fazer, é preciso fazer algo, mesmo que seja para passar o tempo e matar o tédio, e enquanto se faz algo, vive-se. Até que tudo se acaba. E isso é tudo.

A radicalidade desse gesto do cinema de Faro e sua radical rejeição aos caminhos do cinema autoral jovem brasileiro é que permitem apontar para a contribuição de sua poética dentro do cinema contemporâneo brasileiro, como uma forma profundamente honesta e arrojada de expor seu distanciamento e seu desconforto com o cinema e o país de hoje. Aos poucos, do Ecrã a Tiradentes (mesmo numa pequena mostra paralela e não na Aurora, apesar de muito mais inventivo e original que a maior parte dos filmes ali exibidos, mas talvez inventivo demais para essa plataforma de visibilidade), o cinema de Faro vai ganhando maior reconhecimento e atenção, mesmo que ainda para uma parcela muito pequena e restrita de cinéfilos mais livres e ávidos por filmes que possam de fato desafiar as convenções do nosso campo cinematográfico.

 

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