Filmes Brasileiros no Festival do Rio :

 

Andarilho, de Cão Guimarães ** ½

Diário de Sintra, de Paula Gaitán **

A Casa de Alice, de Chico Teixeira **

Mutum, de Sandra Kogut **

A Via Láctea, de Lina Chamie * ½

Meu nome é Dindi, de Bruno Safadi 0½

 

 

Esses são os seis brasileiros que assisti no festival. Nada que tenha particularmente me entusiasmado, inclusive O Andarilho. Por um lado o filme comprova a excelência de Cao e do novo cinema mineiro em perseguir um documentário de “ambiências” mais do que o didatismo das entrevistas, com um diálogo com as artes plásticas, e em continuidade com uma idéia de percurso tão cara ao cinema da Teia (presentes em Nascente, Acidente, Trecho). O tempo e o percurso; o processo e as ambiências: esse é o “documentário mineiro” em sua excelência. Um filme que procura conviver com esse personagem, sentir sua natureza e sua integração com esse espaço físico (com um Brasil interior) mais do que dar respostas, narrar, concluir. Por isso, é puro cinema contemporâneo. Por outro, quando o “louco” “tem voz”, tenho um sentimento de dúvida em relação ao que surge dela: de um lado, “o tom engraçadinho da loucura”; de outro, o discurso da “lucidez da loucura”. De outro lado, ainda um certo esgotamento desse cinema plástico, de um certo arrefecimento. O que surpreende em Acidente é que o tempo todo há um gosto de frescor, uma sensação de estarmos compartilhando uma descoberta, um olhar próprio, particular, mas novo, renovado, sobre tudo o que vemos ali e que nos passa despercebido, um bom diário como os filmes de Jonas Mekas com um discurso de organização interior do material que dá vida, emociona e surpreende. Andarilho às vezes me causou a impressão de um certo formalismo que obscurece a força interior do filme e desse personagem. Mas de qualquer forma, muito acima da média do que andamos vendo em termos de cinema brasileiro, mas um pouco aquém do melhor cinema mineiro.

 

Diário de Sintra também pode ser visto por aí. Por um lado, um filme apaixonante, um filme sobre a memória, sobre como retornar a um tempo que não mais volta (a função da fotografia de Glauber em relação a isso). Um filme em homenagem a alguém que já se foi, mas que por isso mesmo ainda fica, fica na memória, no coração e no olhar dessa realizadora, que é também esposa desse alguém que já se foi. E como o cinema pode resgatar a força dessa imagem passada, os estilhaços desse sentimento único e a angústia da saudade? As imagens (os sons) possuem essa força, esse poder? Às vezes acreditamos que sim, vendo o filme da Paula Gaitán; mas algumas vezes ficamos um pouco perdidos com um certo formalismo, uma certa necessidade de exibir uma catalogação de recursos visuais quando o filme poderia ser inclusive mais simples, mais direto. Diário de Sintra é ainda um filme sobre o exílio, sobre como etar distante de si, sobre como ser estrangeiro numa terra outra, que não é a sua, e o filme tem momentos lindos ao debruçar-se sobre essa intimidade perdida. Mas talvez valham mais pela intenção do que a realização. Ou ainda, o filme me pareceu sem uma estrutura firme que amarre esses momentos, mas como diário íntimo, como um rascunho de ser, Diário de Sintra é bastante bacana, e vale a pena ser visto. Acertando, inclusive, em passar poucas “informações descritivas” sobre Glauber, até porque o filme pode ser visto de forma mais ampla, não sobre o Glauber, mas sobre a perda, o exílio e a saudade.

 

No terreno das ficções, A Casa de Alice me convenceu com seu naturalismo provinciano. Um filme passado numa casa de uma família suburbana, de classe média baixa. A fotografia de Mauro Pinheiro Jr., em planos próximos, nos dá uma certa claustrofobia ao mesmo tempo que nos insere num intimidade desse família. As hipocrisias dos membros dessa família, os acordos tácitos, as pequenas esperanças e sonhos, geralmente vistos com um enfoque sexual. As atuações e especialmente os diálogos acima da média dos filmes brasileiros atuais. Um filme enxuto, que se não é nenhuma obra-prima, é um trabalho honesto e sincero sobre os pequenos dramas dessa família de periferia, sem muitas ambições mas sem conclusões afirmativas. Gosto muito das cenas entre os irmãos, que creio que estão entre as melhores do filme, especialmente como é construído o personagem do filho (o “filho central”), que tem uma certa distância crítica de tudo o que acontece na casa. Acho também que o filme não é moralista ao observar esses personagens, que inclusive mentem, fazem trapaças, para poder se dar bem (por isso falava das hipocrisias). O final em aberto comprova a essência desse cinema: faltou um pouco respirar mais com os personagens ao invés dessa ênfase em narrar, mas de qualquer forma, o filme de Chico Teixeira tem vários méritos, que em trabalhos posteriores o diretor poderá trilhar.

 

Em seguida, dois filmes em torno dos quais nutria forte expectativa por terem sido exibidos na Semana da Crítica em Cannes 2007. Mas os dois decepcionaram em termos. O primeiro deles é Mutum, primeiro longa de ficção da Sandra Kogut, que já havia feito o bom documentário Passaporte Húngaro. Adaptação de um conto de Guimarães Rosa, a dificuldade de Mutum é decidir-se entre um cinema narrativo convencional e um filme mais abertamente contemporâneo, sensorial. Quando a diretora abre espaço para sua generosa câmera (novamente o fantástico Mauro Pinheiro Jr.) “mostrar” a intimidade dessas crianças, improvisando e brincando com elas, o filme se torna uma grande aventura de viver, bela, com energia e sentimento, livre, livre. Mas quando o filme se concentra nas reviravoltas de roteiro (quem traiu quem, para onde o menino vai, etc.) perde a sua força inventiva. Kogut também parece ter se deixado seduzir pela possibilidade de fazer um filme de exportação sobre “a poesia de uma criança num Brasil quase rural”. Por isso, todo o filme fica a meio do caminho do sentimento e da visão de mundo daquele menino. A composição do personagem e sua relação com o pai não é desprovida de interesse, e esse menino é um sonhador, quase identificado com o ato da criação. Uma coisa me incomodou bastante no filme: o fato de descobrirmos, quase no fim, que o menino tem miopia. Ora, isso nos frustra demais, pois percebemos que o filme até então em momento nenhum trabalha o olhar desse menino e sua relação com o meio físico, já que, se assim o fizesse, sua “dificuldade de enxergar” seria visível. Enfim, Mutum tem alguns méritos, que esperamos que possam ser desenvolvidos por Kogut num futuro projeto que seja mais corajoso e mais radical.

 

Ser pouco radical não é o que torna A Via Láctea, de Lina Chamie, um filme desigual. Ao contrário, isso é o que o longa tem de mais surpreendente e instigante: o seu viço de linguagem, sua vontade em abraçar todo o “mundo da linguagem do cinema” ao mesmo tempo, de forma até atabalhoada, mas como se fosse uma involuntária catalogação das possibilidades do cinema de linguagem (voz off, flashbacks e flashforwards, jump cuts, câmeras na mão, sons em dissonância com a imagem, etc, etc). Nesse frescor e nessa busca desenfreada por um cinema inventivo, A Via Láctea se parece com os primeiros filmes da nouvelle vague francesa, e é curiosa a vontade com que Camie abraça essa São Paulo urbana, caótica, em trânsito, tão caótico e fugaz quanto o seu próprio filme. A Via Láctea é um filme sobre um engarrafamento, que separa um casal, sendo uma viagem em trânsito (real, projetada, ilusória) desse homem em busca dessa mulher. Com isso, nos lembramos de Sexta à Noite, filme da Claire Denis, com alguns pontos em contato. Mas a diferença é exatamente essa: Claire Denis não se deixa seduzir pelo deslumbramento de poder fazer um filme inventivo, ela simplesmente o faz. Isso é a maturidade do autor, fazê-lo, mais do que mostrar que “há a possibilidade de fazê-lo”, de modo que A Via Láctea peca por isso, por ser um trabalho um tanto infantil, superficial, sobre as possibilidades do cinema, sobre essa paixão que a cineasta não conseguiu domar na matéria física do filme. De qualquer forma, é interessante pensar nessa São Paulo urbana, nesse caos da cidade que impede que esse casal se veja mais rápido, e que acaba num atropelamento. Isso nos lembra de Não Por Acaso, mas enquanto no filme do Barcinski o atropelamento é sinal de encontro, aqui o atropelamento é um sinal partido, da impossibilidade do encontro. Lá pela metade o filme vai caindo, caindo, caindo de ritmo, até que há uma enorme descontinuidade e o tom passa a ser soturno, pessimista, sombrio, assim como a noite invade o filme. Ficamos com uma sensação de “time is over”, mas o que o filme tinha de melhor se desfaz: esse maravilhamento com o mundo do cinema. Uma cena num livraria tem seu charme, os olhares que se buscam, como os corpos que se buscam, como o carro desse homem que vai em busca dessa mulher. Em suma, ainda que um tanto ingênuo, as possibilidades para que A Via Láctea apontam são grandes, e torcemos para que Chamie consiga equilibrá-las de modo mais maduro em seu próximo trabalho.

 

Por fim, um filme verdadeiramente de estréia, Meu Nome é Dindi, de Bruno Safadi. Bruno tem duas facetas: a de uma filmografia radical (Na Idade da Imagem ou Projeção nas Cavernas, um curta que homenageia o Memórias de um Estrangulador de Loiras, do Bressane), com forte influência do cinema de desconstrução marginal; e de uma filmografia mais amena, com o terno e lírico Uma Estrela para Ioiô, homenagem aos filmes mudos). Safadi parece que quis fazer uma espécie de meio-termo em sua estréia na direção: um filme despretensioso com planos bem alongados e um arrojo na vontade de fazer cinema. Acontece que fica no meio do caminho quando o filme tem mudanças de tom em que o diretor precisa ter uma habilidade narrativa grande para que sejam bem-sucedidas, o que não foi o caso. É uma pena, pois Safadi é talentoso e tem condições de fazer um trabalho mais arrojado, sendo que o arrojo não seja apenas da câmera e da duração, mas um arrojo de dramaturgia, com um roteiro maduro e bem trabalhado. Um tanto ingênuo, o filme se perde na sua segunda metade, a partir da cena da praia, pela dificuldade de a história sustentar a duração do longa e pelos diálogos frívolos. A se destacar a dedicação de Djin Sganzerla e especialmente o fantástico trabalho de fotografia e câmera de Lula Carvalho.

 

Comentários

Julio Bezerra disse…
Ikeda,
tudo bem? queria te parabenizar pela cobertura do festival. muito legal mesmo.

Vc viu o Diário de Sintra às 12h? Acho que te vi, mas na correria do festival, tive que correr para a sessão seguinte...

Outra coisa: vc viu o Estômago?

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