(FESTRIO 6) STELLET LICHT

Silenciosa Luz
De Carlos Reygadas
Espaço 2 sab 12hs
**** (obra-prima)


Li, num desses sites de crítica especializada, que, para quem conhece os filmes anteriores de Carlos Reygadas, não há nenhuma surpresa em seu novo filme, este Silenciosa Luz. Uau. Ao contrário, para mim, tudo foi extremamente surpreendente, e aqui Reygadas nitidamente veio com um fôlego novo, renovado. Em primeiro lugar, vários dos excessos dos seus primeiros filmes (que foram vistos até com razão em certo ponto como cacoetes no segundo) foram cortados, especialmente quanto à duração dos planos e à quantidade de movimentos de câmera autônomos em relação aos personagens. Em segundo, porque o cinema duro e doloroso de Reygadas agora deu espaço a um olhar humano e sensível sobre a possibilidade de contato e a necessidade de amar. Para ver isto basta comparar o mote de Japón e de Silenciosa Luz: enquanto no primeiro o personagem vai para um vilarejo para se matar, no segundo, o protagonista sofre por amar duas mulheres. Há também um leve (ainda que muito leve) humor e leveza, especialmente nas cenas com as crianças, um tom totalmente inesperado tendo em vista a filmografia de Reygadas (vide a sequencia da piscina). Sua obsessão quase desesperada de um diálogo com um lado místico tipicamente mexicano e uma tentativa de combinar o grotesco com o sublime através de uma relação amorosa neste filme também deixam de ser uma preocupação central. Nesse sentido, Silenciosa Luz é uma obra de maturidade, pois os tons de "exotismo" e de "extravagância" dos seus trabalhos anteriores foram revistos, produzindo um filme muito mais orgânico na composição da mise-en-scene mas sem nunca deixar de apresentar o rigor particular da filmografia de Reygadas (o cuidado em cada um dos enquadramentos, os ovimentos de gruas, as aberturas de diafragmas) mas agora de forma muito mais contida e ncaixada na dramaturgia (apenas uma mudança de foco destoa, na sequencia da piscina, quando a câmera fica numa flor, mas de qualquer forma não deixa de ser uma passagem bonita e com sentido na dramaturgia).

Um filme sobre a necessidade de amar, sobre a possibilidade de aceitar o domínio do amor diante de uma criação conservadora e restritiva. Fazer o filme sobre uma comunidade alemã, falado em alemão, pareceu dar mais possibilidades ao cinema de Reygadas, pois é um filme nitidamente alemão e ao mesmo tempo muito próprio da filmografia de Reygadas. Um filme sobre a necessidade de amar. Ora, o mais fantástico é que, para fazer esse filme, Reygadas foi dialogar exatamente com o cinema de Dreyer, mas nunca meramente como uma cópia ou plágio (enquadramento, tempos, movimentos de câmera, iluminação são nitidamente diferentes), e sim a partir de um olhar próprio. Isto está claro quando lá para o meio do filme uma personagem diz que "a paz é preferível ao amor", o que é no fundo o contrário do cinema do Dreyer, em que os personagens partem para um "tudo ou nada" em direção ao amor. Nisso, Silenciosa Luz, cuja estrutura nos remete diretamente a Ordet, é quase o oposto de Gertrud, o filme em que a protagonista deixa toda sua vida comportada em busca de uma possibilidade de uma paixão de verdade. Reygadas procura dar o peso moral para a decisão de seu protagonista: a mulher ou a amante, a vida em família ou esse amor outro que o consome.

O entrecho desse triângulo amoroso é um dos mais banais da história do cinema. O que faz de Silenciosa Luz um grande filme é exatamente seu olhar cinematográfico, sua construção, o rigor dos seus tempos de espera e seu cinema de reedificação moral, sacrifícios, perdões, redenções, ou seja, esse seu cinema religioso com uma estética que valoriza esse cinema moral. As "firulas" do cinema de autor de Reygadas desta vez foram todas simplificadas, numa contenção de energia em que tudo converte para a dramaturgia. Os detalhes, no entanto, continuam lá, lindos: uma folha que cai de um teto, um "tentar" encobrir o sol duro com uma das mãos, o repouso numa árvore como se fosse o final de A Dupla Vida de Veronique. Em Reygadas, sempre impressiona a majestade como o diretor organiza o espaço íntimo de cada um de seus personagens com o espaço físico, e como este assume uma proporção grande, quase assustadora. Do Sol ou chuva duros (a lente da câmera com flare ou com gotículas da chuva), até a neve; grama ou estrada de terra; interiores ou exteriores. Síntese disso, é o maravilhoso plano de abertura do filme, que dá ao drama familiar esse "aspecto cósmico e místico" que é tão caro ao cinema de Reygadas (é só observar os planos da natureza pouco antes do término do filme): a natureza dos homens é no fundo a natureza das coisas. O triângulo na verdade revela-se um círculo, e aqui a busca pelo equilíbrio e pela contenção (e o diálogo com o cinema do Dreyer é fundamental nisso) mostra um cineasta muito mais preocupado com a dramaturgia do que com os efeitos do cinema: tudo em Silenciosa Luz é um calmo e reflexivo movimento do espírito, como uma elegia, uma missa, uma oração. Ou um transe. Ser arrebatado pelo cinema de Reygadas é quase uma questão de fé: para os que o são, fica claro que desta vez cada plano tem uma vontade de entrega e de verdade que raramente pode ser vista no cada vez mais superficial cinema contemporâneo. Ave Reygadas!

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