O Pornógrafo

De João Callegaro

DVD 26 setembro

** ½

 

 

“A solidão na morte. O começo do fim. As regras mudaram. O jogo é outro. Sozinho contra todos. O erro foi esse: jogar sozinho. Sem parceiros. E essas regras novas complicam tudo.

 

O grande jogo da mentira. Gângsters de escritório; burocratas acomodados. Antigamente era mais fácil: a Thompson resolvia tudo. Rá-ta-ta-ta. Fácil, fácil.

 

Agora eu aprendi as novas regras. O jogo se renova. É preciso aprender as novas regras. Inventar! É preciso! Meu tempo acabou. O prazo se esgota. O fim não tarda. Um erro é suficiente. Uma jogada errada e você perde o lugar. Eu perdi.

 

Senhoras e Senhores, façam o seu jogo! Apostem! Apostem que o jogo continua! Um dia a banca estoura! Quando as regras mudarem, vocês vão se lembrar! Miguel Metralha, o profeta do crime! Miguel Metralha...”

 

*  *  *

 

Eu fui convidado para participar de um debate num programa da TVE sobre O PORNÓGRAFO, filme único do paulista João Callegaro. Não tinha visto o filme, mas resolvi participar, até pela oportunidade de ter um DVD em folha do filme. Em primeiro lugar, fiquei surpreendido porque não achei, numa pesquisa ao velho google, nenhum crítica sobre o filme. Achei um texto ótimo do Inácio Araújo, achei um texto do Jairo Ferreira no São Paulo Shimbum recomendando o filme, mas ambos não chegam a ser textos de análise crítica sobre o filme. O texto do Inácio Araújo nos dá acima de tudo informações, extremamente valiosas sobre o filme: sobre seu fracasso de bilheteria, sobre a decisão de Callegaro em deixar o cinema e ir para a publicidade, a improvisação dos atores, etc.

 

O que mais me surpreendeu em O Pornógrafo (vou direto ao assunto) é o fato de ele ser um filme profético. Realizado em 1970, o filme é pura metalinguagem, uma avaliação direta sobre o cinema da Boca do Lixo paulista e a possibilidade de se fazer no Brasil um cinema de vocação popular.

 

Pois bem, o filme fala do jornalista Miguel Metralha (Stênio Garcia). Ele trabalhava numa revista insossa chamada “Comer Bem”, e decide sair da revista e ir trabalhar no escritório de redação de “revistinhas” de conteúdo erótico. São praticamente quadrinhos, desenhados à mão, e que vão enfrentar a concorrência das revistas fotográficas americanas, os “novos tempos”. Apesar de trabalhar num ramo não muito prestigiado, sem muito reconhecimento, Miguel Metralha trabalha não pelo dinheiro, ao contrário, ele sente um enorme prazer em ser redator das “revistinhas”, sente um enorme orgulho do seu trabalho. Ele então quer imprimir uma marca pessoal, um trabalho criativo, mesmo dentro desse ramo aparentemente vulgar, chulo e desgastado.

 

Ou seja, Miguel Metralha é o cineasta brasileiro na Boca do Lixo. Ele não quer fazer filmes intelectuais (Cinema Novo) nem quer a ingenuidade oficialesca das chanchadas. Ele gosta do submundo. Ele no fundo é um punheteiro que deu certo. E tem orgulho disso.

 

Só que O Pornógrafo foi feito em 1970 e a fase áurea da Boca do Lixo foi de 1972 a 1982. Por isso, é profético. Ou seja, Callegaro já apresenta um percurso da ascensão e crise da Boca do Lixo com imensa maturidade e clareza. E mais: realiza uma proposta de cinema popular, porque O Pornógrafo é feito para as pessoas, para o público. Por isso, até foge do estereótipo do cinema marginal, porque se de um lado, o filme é “avacalhado” e mostra um olhar sobre o submundo, por outro há um cinema narrativo, um roteiro e um mínimo trabalho de produção. O filme então mostra uma avaliação crítica da possibilidade de um cinema de invenção dentro da estrutura de subdesenvolvimento típica da cinematografia nacional, articulada com a própria estética do filme que é mostrar isso de uma forma acessível ao público. Isso é visível quanto Callegaro quase não se concentra sobre o processo de criação em si (o traço, a criação das histórias) e sim no entorno do processo de criação, a estrutura econômica da administração e os jogos de poder necessários à preservação do negócio. E sua falência pelo conservadorismo dos verdadeiros donos da praça. Ou seja, Callegaro apresenta sua proposta para o cinema brasileiro possível.

 

O Pornógrafo é também um filme de cinéfilo, uma declaração apaixonada ao cinema. O filme já começa com uma referência aos filmes de gângster (Edward G. Robinson, Paul Muni, James Cagney, Humphrey Bogart), e o próprio personagem do Stênio Garcia ao mesmo tempo que usa essas imagens como referência vai desconstruir os trejeitos desse tipo de anti-herói. Uma mulher fala frases como “ah, como era verde meu vale!”; Madame Rosália desce uma escada em espiral como se fosse Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, essas coisas.

 

Mas a maior homenagem ao cinema foi guardada para o final. Há uma perseguição num parque de diversões, e uma seqüência incrível no trem do terror, com um trabalho de montagem do Sylvio Renoldi (o mesmo do Bandido da Luz Vermelha) impressionante. Depois, o mocinho e o algoz vão para a sala dos espelhos, numa cena diretamente tirada de A Dama de Shangai, de Orson Welles. Esse é o clímax do filme.

 

Mas por fim, quero novamente atentar para o tom profético do filme. E daí na penúltima cena do filme (antes do parque de diversões) vem um monólogo de Miguel Metralha, montado numa moto, pouco antes do fim. “As regras mudaram. O jogo é outro. É preciso aprender as novas regras”. Um discurso que comprova a atualidade do discurso de Miguel Metralha. E nas novas ergras que regem o cinema brasileiro (os editais públicos, as leis de incentivo), como pode haver espaço para um Miguel Metralha? Como se devem jogar as regras do jogo?

 

Comentários

Murilo disse…
http://orkut.google.com/c64176-t3e49f9761d4fb624.html
Murilo disse…

FIIMOGRAFIA - JOÃO CALLEGARO - COM TEXTOS - 23 respostas.

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