Mais Brakhage

Window water baby moving
De Stan Brakhage, 1959
***½

Curta da primeira fase do cinema de Brakhage, antes do Dog Star Man.
Sinopse: mãe grávida antes e durante o parto.

Eu tenho um carma na minha vida que eu preciso ver todo ano cerca de 500 curtas-metragens para a curadoria de uma mostra. Destes, pelo menos 400 (80%) são péssimos ou ruins. Então quando eu vejo alguns trabalhos reunidos do porte desses do Brakhage dá uma enorme alegria por saber da possibilidade de se fazer cinema verdadeiramente experimental, com nada a não ser uma puta vontade de cinema.

Window water baby moving é um milagre. É um dos trabalhos mais poéticos e mais íntimos que eu vi nos últimos tempos. É um trabalho de enorme complexidade, em relação à dor e à delícia que é estar aqui nesse vale de lágrimas. É um trabalho que não apenas nos faz refletir sobre a natureza do cinema, mas sobre a natureza do mundo, sobre a nossa própria natureza. E o faz sem que ao final tenhamos fôlego de ter qualquer conclusão, pois é um trabalho que nos permite caminhar a partir do que é visto/vivido.

Esse fantástico curta de 10 minutos deve ser visto juntamente com The act of seeing with one’s own eyes porque acho que um complementa o outro. Este mostra um parto; o anterior registra a autópsia de cadáveres. No fundo é parte da mesma vida: onde acaba um, começa o outro.

Há muito para se falar desse filme. Ele começa poético como se fosse um filme feminino da Maya Deren, mas o olhar de cinema de Brakhage vai além da construção desse cinema poético, ele precisa ir mais a fundo para mostrar do que é feito o cinema e do que são feitas as coisas. Ele então vai inverter essa sua referência do filme poético, da sensualidade da grávida para transcender essa questão, para mostrar do que é feito o seu cinema e do que é feita a vida.

Para isso, Brakhage faz uma estética ao mesmo tempo enormemente ética e respeitosa a esse sentimento do parto, ao mesmo tempo enormemente fiel e em continuidade com as questões da sua filmografia enquanto realizador e ao mesmo tempo extremamente crítica seja em relação à composição do filme tradicional seja em composição à própria realização do filme experimental.

Nos filmes de Brakhage não há redenção propriamente dita. Ele faz questão de mostrar as pedras do caminho porque quanto mais se concentra nelas mais parece que seu cinema vai ser ético em coroar esse percurso mais do que mostrar o resultado. É aí que ele se afasta da narrativa clássica, onde os obstáculos só servem para valorizar o herói. Aqui não se trata nem mesmo de obstáculos, trata-se do percurso da vida.

Por fim, penso um pouco nas relações entre esse filme e o tétrico Parteiras da Amazônia. É exatamente onde avança o cinema mágico de Brakhage: não é a poesia da desgraça nem é a desmistificação da poesia do nascimento. Não se trata disso, porque isso é muito pequeno. Brakhage simplesmente faz vida com o cinema e faz cinema com a vida. Não tem moralismo, não tem vitimização, não tem contraponto de discurso porque aqui não cabe: é preciso ir ao que interessa, ao cinema dos sentidos, a esse grande mistério caudaloso, terrível, asfixiante, telúrico que é a nossa vida.

Esse curta também faz o projeto conservador do tempo no curta do Victor Erice – Limeline – virar fichinha... mas essa é outra história, mais complicada.

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