DESERTUM por Rosemberg

 “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”       Hamlet - Shakespere

 

DESERTUM

 

Uma vez mais um olhar sofisticado e sofrido sobre o velho-novo espaço da casa onde tudo se parece. E sair de si é reencontrar o inferno no vazio do mundo onde bonecos vestidos de gente falam sem nada dizer. Espaço onde pessoas trabalham como peças de uma grande máquina de manipulação das nações onde todos se parecem. Nas tantas e tantas imagens do novo longa de Marcelo Ikeda, o vazio como única identidade da automatização humana sem espaço para a dúvida, o afeto, o ser e o saber.

 

Ontem era “EM CASA”, de onde parte para um outro deserto pretensamente diferente. Mas aqui e ali são duas faces da mesma moeda. Silencioso o personagem-câmera faz uma espécie de inventário dos seus medos e ambigüidades. É um jovem cineasta que se filma perdido em suas tantas ausências, até o grito de vida ou de morte. Ikeda se obstina a falar do tempo que nasce dele para se tornar ainda mais estranho para o outro. Claro que não é uma relação fácil do filme com o espectador dopado pela TV. Ou seja, na TV não se quer saber de devaneios poéticos, e sim um consumidor voraz dos tantos e tantos horrores da política. Já DESERTUM vai no sentido contrário da palavra que não diz, ou do sonho sem imagem.

 

Pode-se até não gostar da sensibilidade poética do realizador sem que a obra perca o seu valor cinematográfico de extrema ousadia alegórica. Ikeda não faz gênero, muda a história do olhar demencial do mercado. O que lhe interessa é a não-existência, a dor, o não-ser, e não o objeto à venda por esta ou aquela agência de publicidade. Ouvi alguém dizer que DESERTUM era uma espécie de eletrochoque na alma, e achei oportuno. Pelo menos não é um “eletrocheque” sem fundo. E ótimo que não seja um trabalho fácil, comum e previsível como o patético “Se eu Fosse Você” ou o atraso de “Dois Filhos de Francisco”. Ikeda se coloca em oposição ao “cinema” de clausura. O “cinema” que vai suscitar o fascismo de guerras, populismo, demagogia e o bom comportamento do cinema televisivo, boçal.

 

Ikeda é o seu próprio personagem: forte, fraco, piedoso, melancólico, desconhecido... Vaga no espaço-tempo colocando-se no lugar da câmera. Rio de Janeiro, Buenos Aires ou Marienbad? Tal como se deixa ver não se preocupa em essencializar o olhar do outro. Tanto melhor para os que sabem ver e pensar. Pensar o vazio do ser e das coisas. DESERTUM ajuda-o a procurar o seu próprio corpo-emocional, esmagado na dor dos seus suplícios. A imagem então torna-se um recurso terapêutico colocando-se como um imenso espelho das suas pequenas e grandes emoções. E ao se aproximar do ser-espatáculo-estrangeiro, torna-se um silêncio espaçoso para todos. Ora, de que valem palavras que nada dizem? Já isso não seria o poder? Ousaria dizer que se trata de um trabalho voltado para dentro do realizador esculpindo seus sonhos e medos. Walt Whitman dizia que “tinha multidões dentro de si”. Ikeda, tempos, olhares, espaços, objetos e cidades. Seu êxtase cinematográfico não passa pelo espetáculo, mas pela estranheza sossegada pelo sonho que não se explica com facilidade como por exemplo a volta à casa, o traumático IPTU, a secretária eletrônica sem recado algum, o olhar vazio sobre a cidade, o grito. Para o angustiante realizador, o imaginário não pode ostentar sem crítica o comum, o falso ou a prostituição da alma.

 

O vazio que se presencia é um convite delicado à assimilação de um outro tipo de cinema não mais dividido entre o mercado e o Oscar, e sim entre as diferenças e proximidades da vida com a morte. Tenho a sensação de que seus sons silenciosos, belissimamente escolhidos por Ricardo Pretti, correspondem à investigação conceitual do trágico ofício de viver num país maldito como o nosso, ainda dividido entre o mercado e o Oscar. Ou seja, somos todos estrangeiros esvaziados de sonhos possíveis. E o que me parece mais importante na narrativa de DESERTUM, não é o explendor de vida, e sim pertencer-se a partes mortas que carregamos na vida como a família, a educação, a religião, o trabalho, o dinheiro, as doenças... E se somos todos chefetes do nada, o referencial passa a ser a loucura ou a morte. Na verdade somos todos espectadores e personagens da penitenciária Brasil. É a Argentina, mas o espaço real pouco importa pois fala-se do continente-Alma.

 

DESERTUM é uma espécie de profundeza da danação. E ao não induzir o espectador a nada, torna-se uma investigação na linguagem do saber. Perspicaz na elegância de alguns bonitos planos nos remete ao cinema de Antonioni. Mas mesmo o mestre passa ao longe com o seu silêncio cinematográfico exasperante em muitos momentos. E se o começo é o final enlouquecido, o que justifica ser comum, infeliz ou normal? Ikeda em anti-movimentos ritmados debruça-se em ziguezagues profundos entre crepúsculos, a vida, a morte e o pensamento de ser o nada para a vida ou para o fim.

 

Talvez seja essa a única alegria do saber: o de não ser idiota, ou catastrofista, vendendo e se escondendo em Deus. Deus somos todos. Só que chegamos demasiadamente tarde para as festas dionisíacas banhadas pelo prazer e pelo bom vinho. Pena.

 

Luiz Rosemberg Filho

15/02/2006.

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