O AGENTE SECRETO
[COBERTURA DO 58º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2025]
[FILME DE ABERTURA]
O AGENTE SECRETO
de Kleber Mendonça Filho
O
Festival de Brasília de 2025 abriu com grande expectativa para a segunda
exibição no Brasil de O Agente Secreto,
dois dias após a catártica sessão em Recife, com a presença de 100 exibidores
convidados. No palco, Kleber apresentou o filme a partir de um elemento-chave:
este filme de época, passado em 1977, dialoga diretamente com o Brasil dos
últimos dez anos.
E, de fato, o grande mérito de O Agente Secreto reside na sua capacidade de transcender a
estrutura de thriller detetivesco e expor, de maneira abrangente, os modos de
ser da sociedade brasileira. Ele demonstra como o projeto autoritário e
violento da ditadura não foi um mero parêntese histórico, mas sim uma
manifestação de heranças enraizadas, que remontam à relação arcaica de
casa-grande e senzala e que se perpetuam até os dias de hoje.
Para tanto, o filme opta por
outro encadeamento narrativo, diferente das apressadas narrativas de
causa-e-efeito lineares, e apresenta um desfile de casos e situações em que o
comum e o fanástico se misturam – e isto é Brasil. Afinal, como diria Jobim, “o
Brasil não é para principiantes” rs. Um exemplo claro dessa abordagem está no
prólogo, onde o fusca do personagem de Wagner Moura é revistado minuciosamente
pela polícia, enquanto um cadáver em estado de putrefação é ignorado. A
mensagem é clara: o sistema não se interessa pelo que "já foi", mas
pelo que "e$$tá por vir", num cenário de corrupção endêmica que o
filme aborda não pelo prisma da denúncia, mas a partir de um desejo fabular. Ao
mesmo tempo, a narrativa respira um imenso "prazer em narrar", sem
pressa, permitindo que cada cena se desdobre e revele camadas de significado.
Mas
como dizíamos no início deste texto, esses modos de ser não são exlcusivos
desse momento epecífico em que reinava um regime de exceção: no Brasil, a
exceção parece que se torna a regra. As analogias com o momento atual não surgem
apenas em episódios pontuais, como a citação quase literal do episódio de Sari
Corte Real – a ex-patroa da mãe do
menino Miguel, que morreu ao cair do 9º andar de um prédio no Recife em junho
de 2020 –, mas se estendem a um retrato mais amplo do Brasil de hoje, com a
ascensão da extrema direita e seus sintomas: milícias, ataques à universidade,
racismo e machismo. Ainda que algumas vezes o filme exprima essa relação
conjuntural com o Brasil de hoje de forma um pouco esquemática, é inegável que
a galeria de figuras grotescas e caricaturais está assustadoramente próxima da
nossa realidade.
Seria preciso um texto maior
para propor uma relação entre O Agente
Secreto e Ainda estou aqui – dois
filmes brasileiros recentes de grande repercussão internacional que se propõem a
revisitar os efeitos perversos de um bárbaro regime poítico que decide
exterminar dois homens inocentes. No entanto, é importante citar a principal
diferença: enquanto Salles opta pelo melodrama e pela concentração narrativa na
família, Mendonça Filho dialoga com o thriller político, expandindo os núcleos
de personagens e formando um amplo e complexo tecido social, sem abrir mão do
humor ácido.
Poderíamos também fazer uma
relação com certo cinema brasileiro, como, por exemplo, com Lúcio Flávio, o passageiro da agonia
(Hector Babenco, 1977). Mas o que mais me desperta – pelo menos neste primeiro contato
com o filme – é seu profundo desejo em dialogar com certa cinefilia, e em
especial o cinema americano do final dos anos 1960/1970. Já era possível ver
isso em outros momentos do cinema de Kleber, mas aqui essa relação se torna uma
chave de leitura quase explícita. Essas opções se expressam não apenas em
alguns recursos-fetiche, como, entre outros, o formato panorâmico ou os cortes
em cortina, mas especialmente numa outra forma de narrar e apresentar o
submundo das relações humanas e sociais. O filme se parece com um exemplar na
Nova Hollywood no Brasil de hoje – e não é à toa que aparece um cartaz de No calor da noite (Norman Jewison, 1967)
em um certo momento do filme. É preciso ver O
Agente Secreto não apenas pelo seu retrato de tipos sociais mas também pela
busca de um cinema atmosférico, regido pela cinefilia. Esse desejo pela cinefilia
também se espraia pelo filme como reverberação de Retratos fantasmas, pelas relações entre cinema e cidade, pelo
imenso papel que o Cinema São Luiz oferece na narrativa, pela forte presença do
filme Tubarão (Spielberg, 1976) ou
mesmo a grande participação do projecionista representado pelo sempre brilhante
Carlos Francisco. (A propósito, o filme possui uma galeria de personagens
marcantes, alguns inesquecíveis, como o delegado interpretado por Robério
Diógenes ou a Dona Sebastiana por Tânia Maria (uma artesã de Parelhas que
surgiu aos 72 anos como figurante em Bacurau).
É totalmente possível relacionar
O Agente Secreto diretamente com um
conjunto de artigos que desenvolvem a presença de uma estética da nostalgia no
cinema contemporâneo. A reapropriação de Mendonça Filho dos anos 1970 possui,
portanto, um sentido duplo: de um lado, uma proposta política de relação da
ditadura com o Brasil de hoje; de outro, uma relação de nostalgia cinéfila, por
meio do diálogo com uma tradição do cinema autoral independente
norte-americano, num contexto diferente dos blockbusters
atuais e seus filmes de superherois. A relação do filme com os anos 1970 é,
portanto, ambígua, uma combinação entre rejeição e afeto, entre a política
brasileira e o universo fílmico norte-americano. O universo do cinema surge
como refúgio possível, ou projeção como campo de fantasia, para quem preferir
uma leitura psicanalítica. Como eu havia sugerido em meu texto sobre Bacurau, O Agente Secreto também é a
resultante desses paradoxos. Essa combinação entre afeto e repulsa também está
presente em diversos outros elementos do filme, como se Kleber rompesse o
slogan da ditadura “Brasil: ame-o ou deixe-o” para propor algo mais na linha do
“ame-o e o odeie!”. Esse olhar não romantizado se manifesta na forma como o
filme retrata com fascínio a cidade de Recife, mas ao mesmo tempo revelando
seus processos sociais segregadores. O ponto alto dessa ambivalência talvez
seja a cena de Tubarão no Cinema São
Luiz: a exaltação da cinefilia popular em um grande cinema de rua, por meio de
um blockbuster das majors.
O desefecho de O Agente Secreto é bem menos otimista e
catártico que o de Bacurau. O agente
vira uma mera manchete de jornal, lembrando o final do visionário Benjamin
Abrahão em Baile perfumado (Lírio
Ferreira e Paulo Caldas, 1996). É um acerto do filme não mostrar a cena de sua
morte, o que o torna o oposto de Marighella
(Wagner Moura, 2019), com seu final ao estilo de Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967). É mais eficaz mostrar os
assassinos sendo executados, como o personagem de Gabriel Leone, um mandante
morto por um pistoleiro pobre. O epílogo, com o encontro entre a pesquisadora e
o filho do agente, nos remete para o presente e para as lacunas de nossa
memória, ou ainda, os abismos entre gerações. O antigo cinema virou um
hospital; em Retratos Fantasmas, uma
farmácia. Não é uma coincidência: ambos os filmes denunciam nossos apagamentos
sociais, mostrando como o suposto progresso capitalista sempre encontra uma
forma de encobrir, de empurrar para debaixo do tapete, as agruras e a violência
estrutural do nosso país. O Agente
Secreto encontra uma forma cinematográfica para trazer esse debate à tona.
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