MFL: Trânsito por Dora

TRÂNSITO POR DORA, de Paula Faro
Viver a vida

O autor muitas vezes já foi comparado com um títere, que controla o rumo de suas marionetes ao seu bel prazer. Mas em Trânsito por Dora, de Paula Faro, o que importa é a luz de uma marionete, sua possibilidade de sobrevivência, de esperança, de desejo. Com isso, toda a trajetória do curta é de uma singela via-crúcis por uma tentativa de viver a vida, de tornar a matéria inanimada capaz de se libertar de suas correntes e ter um olhar, pulsar um desejo. Romper as correntes para Paula Faro é estilhaçar inclusive as possibilidades da narrativa cinematográfica. Dessa forma, foi várias vezes mal interpretado como um mero entremeio entre a videodança e a videoarte. O corpo se revela cárcere da alma, mas por ele transpassa esse desejo incontido de libertação, que percorre todo o filme, que conta com um trabalho singular de interpretação e postura corporal. Essa desesperada tentativa humana dessa marionete ganhar vida é pontuada por Faro por um cinema austero, mas de grande intensidade poética e de intenso vigor cinematográfico, que dialoga (de forma indireta) com um cinema feminino vanguardista, especialmente o de Maya Deren. Como um anjo caído, a marionete, ao ter contato com o mundo das coisas, percorre a geografia urbana de São Paulo e se entrelaça com ela: as placas de trânsito desorientam a passagem da marionete sonâmbula, como se estivesse num castelo de cartas, num labirinto urbano evocado de Alice no País das Maravilhas. Por entre ruínas abandonadas, semi-mortos vêem seus sonhos de redenção fracassados. No alto de um prédio, a possibilidade do suicídio, acompanhado por um soturno mestre-títere que explicita os recursos do expressionismo alemão, base de referência do filme (acompanhada pela trilha sonora). Pelo caminho, a marionete encontra nada mais a não ser a si própria. No fim do caminho, há uma porta (na verdade, já havia desde o início). Quem ousar abri-la (o espectador tem a chance de abri-la como a marionete) que encontre a dor e a delícia de ser de carne e osso.

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