(TIRADENTES2023) XAMÃ PUNK
COBERTURA TIRADENTES 2023
XAMÃ PUNK
de João Maia Peixoto
Mostra Aurora
A Mostra de Tiradentes é
conhecida por apresentar filmes desafiadores, que buscam romper com as
convenções estabelecidas. Ainda assim, Xamã
Punk talvez seja um dos mais radicais filmes já exibidos em todos esses
anos de Mostra Aurora. Como o filme estilhaça por completo uma possibilidade de
construção de sentido, ele soou para quase todos que assistiram ao filme aqui
em Tiradentes como uma mera brincadeira pretensiosa e vazia de um grupo de
jovens mimados. Acho importante que essa recusa inicial grosseira possa ser problematizada,
ao mesmo tempo em que ressoa um desejo de questionar: o que de fato essa
descontrução propõe no atual cenário do cinema brasileiro?
O filme incorpora de maneira
extremamente radical elementos como ruídos de imagem e de som, imagens
propositalmente embaçadas ou sem foco, movimentos abruptos e incompletos de
câmera na mão, intensa fragmentação narrativa decomposta em esquetes que não
desenvolvem ou se articulam em teleologia, personagens como corpos performáticos,
etc. O esboço de fio narrativo se apresenta com um grupo que sai de uma caverna
e parece habitar em um mundo pós-apocalíptico, num forte embate entre natureza
e civilização. As ruínas de uma construção e carcaças de equipamentos
eletroeletrônicos convivem com a forte presença da natureza como uma pequena
floresta.
As ideias de xamanismo e do
universo punk surgem como meros pontos de partida que o filme não apresenta
muito interesse em aprofundar ou desenvolver. E de fato, “aprofundar e
desenvolver” não é aderente ao que o filme se propõe – uma experimentação
sensória pelas superfícies do corpo e da imagem. O filme parece muito mais se
concentrar num exercício de radical descontrução mas não sabe muito bem o que
fazer com seu material. Um filme primitivo pós-acocalíptico, as ruínas de uma
civilização (inclusive a civilização-cinema). Em determinado momento, um dos
personagens que produz algo parecido com uma pintura rupestre recusa o rótulo
de artista. Um filme disruptivo e distópico. Um corpo desorganizado e um filme
como corpo-ruína de si. A exasperação do presente mas sem melancolia. Ao mesmo
tempo, esse desespero não consegue transformar os sentidos numa experiência em
potência, de modo que o filme tateia possibilidades mas não contagia o espectador
com essa energia protoprimitiva. Talvez o filme seja uma mera brincadeira, que
dialoga com a ideia de avacalho e crise da produção de sentido num mundo
fraturado, como o cinema marginal e o Super-8 brasileiros dos anos 1970. Ou uma
mistura estranha entre arte conceitual contemporânea e o filme teen trash. Mas
o filme de João Maia Peixoto nem tem o visceralismo irônico de um Petter
Baiestorff nem o rigor pulsante de um João Pedro Faro. O filme parece não
propor um diálogo com uma tradição de cinefilia ou com um percurso de
referências artísticas.
Elementos como imagens e sons extremamente
ruidosos, personagens performáticos que transitam em improviso pelo espaço, a
relação entre natureza e ruínas, remetem a certos elementos do cinema marginal
brasileiro mas com um certo apreço por uma autoironia. Os adereços religiosos
utilizados em rituais anarcotrash de criaturas seminuas parecem querer
ingressar por uma espécie de subgênero próprio: o xamãploitation. As ruínas de um filme que mal conseguiu ainda se
erguer. Diante das ruínas de uma civilização-cinema, esse grupo de amigos
parece passear em deriva num percurso interessante pela sua radicalidade, mas
sem conseguir extrair grande potência dos seus desejos. De todo modo, esse
desespero light e essa radicalidade de superfície parecem surgir como sintomas
de uma geração pós-tudo que sabe que precisa romper com as tradições mas que
não sabe muito bem como fazer. Nesse sentido, o projeto estético-político de Xamã punk expõe muitas das suas contradições.
Se o filme parece querer romper pelo avesso as convenções do bom gosto do
cinema e de seu projeto artístico canônico de uma arte capitalista burguesa,
ele acaba paradoxalmente ressoando como um giro em falso diante de um mundo em
que o anti-establishment também se integra ao circuito das artes como um
recurso de efeito. A pergunta que ressoa após o final da projeção é: o que de
fato Xamã Punk propõe a partir das
ruínas da civilização? O que de fato a experiência do filme faz perdurar no
corpo e na consciência do espectador ao fim da projeção?
Ano passado fiz a provocação que
Extremo Ocidente, de João Pedro Faro,
deveria estar na Mostra Aurora, porque se trata de um realizador que promove
uma pesquisa consciente e em formação em relação a outras possibilidades para o
cinema brasileiro independente. Nesse sentido, sinto que Xamã Punk talvez fosse melhor compreendido na Mostra do Filme Livre
do que na Aurora de Tiradentes.
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