(TIRADENTES2023) Solange
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
Solange
de Nathália Tereza e Tomás von der Osten
Mostra Aurora
Solange é um exercício de contenção, delicado e duro, direto, sem
firulas, filmado em regime de urgência, raro por essas bandas de cá. A trama é
simples: a protagonista Solange volta à sua cidade para buscar umas caixas que
deixou na casa de alguns conhecidos. A sinopse já nos diz que “Solange quer
suas coisas de volta”. O início do filme mostra Solange rodeada por algumas
caixas grandes de papelão, quando não sabe o que deixar e o que levar. Lembro
um pouco do início (do mesmo dilema) da protagonista de Sexta à noite, de Claire Denis. Esse mote inicial é tudo o que
precisamos saber acerca da psicologia da personagem: ela quer levar algo
consigo, mas, para continuar, é preciso deixar algumas coisas para trás.
O filme, então, prossegue, por
meio de um conjunto de cenas em que Solange se encontra com pessoas diversas
para recuperar parte das peças de seu passado. No entanto, o reencontro com
Solange não parece ser particulamente amigável, isto é, Solange nunca é
totalmente bem recebida. A dramaturgia surge, portanto, dessa fricção entre o
corpo de Solange e de seus encontros. Solange é sempre uma estrangeira,
visitando de passagem esses lugares provisórios em que ela não habita, e o
filme se instaura no interior desse incômodo ou mal-estar disparado por um
corpo estrangeiro num espaço provisório em contato-conflito com outro corpo. Em
outras palavras, Solange não é livre. Ela precisa promover um acerto de contas
com seu passado, e ao mesmo tempo, libertar-se dele para poder prosseguir.
A opção da dupla de realizadores
em encenar essas questões ocorre por meio de um cinema quase direto, uma câmera
fechada muito próxima ao corpo de Solange, num enquadramento 4:3, que insiste
nesse sentimento de asfixia e de enclausuramento. Até chagamos a ver algumas
cenas externas, mas não conseguimos reconhecer de que cidade se trata, não
importa muito bem. O estilo é cru e duro: a câmera na mão em planos fechados, o
estilo semidocumental de cinema direto, o despojamento em termos de arte e luz.
Essa crueza, a meu ver, é um dos
maiores méritos do filme: a vontade de mergulhar na condição da personagem
apropriando-se das condições precárias de produção para torná-las uma potência.
Desse modo, a primeira
referência que me vem à cabeça é o cinema de Cassavetes, seu trabalho com as
atrizes, a dramaturgia despojada (sem adornos ou adereços desnecessários), seu
desejo de mergulhar nas angústias de sua protagonista mas sem os recursos
triviais da psicologia clássica quanto ao conexionismo entre causa-e-efeito,
etc.
Este último ponto merece um pouco
mais de atenção. Por que as pessoas tratam Solange tão mal? Solange nunca é uma
mera vítima, mas há algo nesse passado que nunca será resolvido ou desvendado
pelo filme. Os objetos que ela procura resgatar parece não possuir muita
importância para além do trivial – poderíamos dizer que eles estão ali
simplesmente “para fazer cinema”. Solange
é sobretudo um cinema do presente, um cinema tátil que surge da fricção entre
dois corpos num espaço-outro, onde a dramaturgia busca tirar potência de uma
situação cênica até mesmo um tanto trivial. Ao mesmo tempo, a desorientação da
personagem é refletida por meio de um uso discreto mas sábio da mise en scène (exemplo: as sucessivas
quebras de eixo enquanto Solange vai-e-vem com um conjunto de caixas nos
corredores de um prédio, ou quando a câmera circula em torno da personagem
bêbada, criando uma certa vertigem).
Solange é sobretudo um filme-de-afetos, embora precisamos nos
lembrar que os afetos nem sempre são “aquela brisa de acolhimento delicado e
melancólico” mas também podem ser tumultuosos ou daninhos. Talvez o final seja
compreensivo demais, e acabe abraçando a personagem numa dança-acalanto,
aclimatada por uma espécie de música-tema, que rompe com a abordagem de
“grossura franca” de todo o filme. Ao final, o filme não quer julgar mas
compreender as angústias de Solange, uma mulher que se assume nas suas dores e
delícias e procura viver se olhando de frente, prosseguindo ainda assim. Se o
epílogo funciona dessa forma, talvez dilua um pouco da sua potência bruta radical.
De todo modo, no Brasil de hoje regido pelo feminicídio, talvez seja importante
recuar um pouco e abrir possibilidades da sobrevivência de imaginários. Ainda
assim, perdura na minha cabeça a solidão de Solange, essa aposta radical na
solidão, que, mesmo com o final-acalanto, permanece até o final. Solange terá
que encontrar as chaves para seus dilemas sozinha, sem família, sem
companheiro/a e sem amigos/as. Esa solidão extrema do indivíduo sem sociedade,
sem partido político, sem movimento social, sem igreja, sem
o-que-quer-que-seja. Mesmo a dura Rosetta no final do filme dos Dardennes
encontrou alguém a quem lhe dar a mão. Pelo menos Solange parece estar
economicamente bem – as questões sociais não são uma chave do filme. Nem
tampouco as questões identitárias – mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de
pensar que, de forma bastante sutil e delicada, Solange examina, mesmo sem torná-la questão direta ou central, as
angústias de uma mulher negra, ainda que de classe média.
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