(TIRADENTES2023) Peixe abissal
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
Peixe abissal
de Rafael Saar
Mostra Aurora
A
princípio, poderíamos ver Peixe abissal como um documentário sobre
Luís Capucho. No entanto, Capucho é um artista, que transita entre a
literatura, a música e as artes visuais, cuja pesquisa de criação está
intimamente relacionada às suas próprias experiências pessoais. Desse modo, em
vez de blocar, de forma entrecruzada, os relatos biográficos com as obras
realizadas, por meio de uma abordagem panorâmica, como o adotado, por exemplo,
por O cangaceiro da moviola, de Luís
Rocha Melo, Saar optou por uma abordagem mais complexa, mais delicada, ou ainda,
mais contemporânea: Peixe abissal é moldado por meio de um
atravessamento orgânico entre a vida e a obra de Capucho, guiada por uma ideia
imanente de fluxo de sensações, de modo a criar um amálgama intrínseco, como um
processo esmerado e cuidadoso, uma teia costurada à mão, cozinhando em fogo
baixo, que revela com muita delicadeza o universo do autor não de forma
meramente descritiva mas que nos permite vivenciar as experiências que
engendram a essência de sua obra-vida.
“Quem dera ser um peixe”. Peixe abissal é guiado pela lógica do
fluxo, em que o percurso pelas águas tenta tornar palpável ou corpóreo esse
trajeto de uma vida, invadida pela curiosidade e pelo risco. Assim, não há
espaço para uma análise da obra de Capucho, ou pela presença de notáveis
(entrevistas, dados, informações, prêmios, efemérides, etc.) ou qualquer
recurso que possa institucionalizar, canonizar ou monumentalizar o autor. O
autor (re)surge nas suas interpenetrações entre obra e vida, e o filme busca
mergulhar em deriva simplesmente como potência. Ao mesmo tempo, Capucho surge
como um personagem de si (é o próprio Capucho que surge como protagonista do
filme, representando seu próprio papel). O autor-Capucho é o grande personagem
de suas obras, de modo que, se Capucho não existe, ele é criado pelas lentes de
Saar.
Se Solange, de Nathália Tereza e Tomás von der Osten, nos impacta pelo
tom cru de extremo despojamento, já Peixe
abissal é um filme de surpreendente esmero de mise en scène para um filme de vocação documental. Em alguns
momentos, o filme abandona quase por completo essa suposta “vocação documental”
para se tornar um ensaio visual. Por exemplo, quando Ney Matogrosso promove uma
espécie de performance onírica, sequel-avesso de Homem-Ave, curta anterior de Saar, em forma de sereia-apanágio da
morte. Ou ainda, como a câmera filma o corpo de Capucho a nadar pela piscina.
Ou como se filmam os rituais sociais de um cinema pornô, como se num filme de
Jacques Nolot (especialmente O gato de
duas cabeças [ver aqui] ou no belíssimo Antes
que eu esqueça [ver aqui ou aqui]). As texturas visuais desenvolvidas pela fotografia de
Matheus Rocha sem dúvida contribuem muitíssimo para esse clima de “elegance
avec decadence” que rodeia todo o filme, essa aura misteriosa, esse desejo de
evocar climas cinematográficos por meio dos sentidos, em vez de fornecer
informações blocadas sobre temas/questões desenvolvidas pelas obras do autor.
Sinto que a forma franca como
Capucho abraça sua aparente fragilidade (que começa pela fragilidade de seu
corpo) é o que torna esse filme um libelo emocionante sobre a resistência do
artista diante de um mundo materialista em ruínas. Sobre não só o papel do
artista em nossos dias mas especialmente sobre a importância do processo
artístico como mergulho de cabeça em um abismo em espiral em busca de nossa
experiência sensível, num processo radical de autodescoberta. Não foram poucos
os que comentaram, ao fim da sessão, que talvez o filme rodopie em falso, e que
a duração poderia ter minutos a menos, mas sinto que Saar prolonga o filme com
o desejo de permanecer um pouco mais ao lado de Capucho, e que é preciso
mostrar mais. Algo similar ao que já havia acontecido com Yorimatã, interessante longa anterior de Saar, que também se
debruça sobre a vida-obra de artistas para além do meramente biográfico, e que
também é montado pelo próprio Saar.
Peixe abissal teve uma produção acidentada. Um projeto que começou
em 2015 e que foi atravessado por interrupções, problemas com a Ancine com
mudanças de governos, e pela passagem de um de seus membros estratégicos, o
querido diretor-assistente Luiz Giban. Ao final, ressurge como fênix, e vemos
Capucho ali, sentado no debate da manhã seguinte à exibição do filme na Mostra
de Tiradentes, dizendo, com seu jeito sereno, que não sabe dizer o que é esse
filme, pois ele não tem essa capacidade de análise. Sereno mas vivo, olhos
arregalados diante do mundo, poroso, pleno. Penso, então, na bela pergunta que
fizeram durante o debate: o que há de Saar ali nesse universo sobre Capucho?
Penso que o filme é esse lugar outro, esse terceiro entre Saar e Capucho. Sem
dúvida, o filme expressa o olhar de Saar, mas, ao mesmo tempo, o atravessamento
pelo universo de Capucho o levou a um outro lugar, e essa metamorfose nos
sugere o lugar dos encontros na arte e na vida.
Comentários