Desertum, por Ricardo Pretti

Desertum
Escrever sobre o novo filme (vídeo) do meu amigo Marcelo Ikeda pra mim é triplamente difícil. Em primeiro lugar eu não sou um crítico de cinema (teórico) e não domino as palavras como gostaria. Em segundo lugar eu fiz parte de parte do processo do filme e eu tenho um envolvimento muito intenso e completo (apesar de sempre incompleto) com a obra toda do Ikeda. Em terceiro lugar eu acho muito difícil falar de um filme que se fez com tanto rigor e tanta dificuldade a ponto de mudar as minhas concepções sobre o Ikeda que eu conheço e venho conhecendo. Mas como a vida é feita de erros e de vontades de aproximação e contato eu escolhi debruçar sobre alguns aspectos que esse filme vive e respira e toca e experimenta.

***

O filme começa e eu sei que é um filme do Marcelo Ikeda. Eu sei que o filme é dele porque só ele faz planos que me lembram Mondrian e só ele filma a casa dele e só ele filma. O que eu não sei é que ele vai levar a câmera para um lugar que ele nunca levou antes: o aeroporto. O aeroporto é o primeiro lugar onde o Ikeda começa a se perder. A câmera apesar de inquieta me traduz uma serena melancolia que está dentro do Ikeda e não no aeroporto e eu não preciso de mais nada pra saber que a câmera é o interior (a visão) do realizador. A sua obra superou a necessidade de certos paradigmas: o uso do "plano-subjetivo" é uma delas.

Ao sair do aeroporto estamos novamente numa casa só que agora as imagens estão mais desconfortáveis e perdidas e a música que eu ajudei a escolher mostra que está acontecendo um rito de passagem que não sabemos exatamente o que é. Enquanto vemos aquelas imagens da nova casa sabemos que ali ele não pode ficar. Existe um grande desconforto.

Ele está na Argentina, mas poderia ser a China ou a Índia e só poderia ser a Argentina porque o Ikeda é um cineasta da arquitetura (como Barry Guy é um músico da arquitetura) e sendo assim, eu sei que ele vai me mostrar do que é feito Buenos Aires, mas quanto mais eu vejo o filme mais eu entendo que o arquiteto da intimidade que existe dentro do Ikeda está perdido, cada vez mais perdido e mais imerso nos grandes planos gerais daquela cidade.

E desse jeito o filme segue o seu curso de estranhamento e de estrangeiro. O estrangeiro é um deslocado e esse filme é sobre o deslocamento e é aí que o filme do Ikeda impressiona ao dominar a primeira revolução no cinema: a revolução do espaço. Aqui o espaço é muito importante e aqui o tempo vira espaço e não o contrário. E o espaço aqui é quase simétrico (como em Mondrian). E se o tempo é espaço é porque o tempo é tratado na montagem. E na montagem ele realiza uma idéia de democracia dos planos: todos os planos têm o mesmo direito e o mesmo valor apesar de ocasionalmente um plano se destacar e se alongar não por um capricho, mas por uma ordem livre das coisas como elas são (e não como elas representam).

Ao voltar pra casa velha Ikeda já não é o mesmo. O Ikeda deslocado e perdido não voltará a ser o mesmo, não será o Ikeda antes da Argentina e não será o Ikeda de Em Casa. Quem é Ikeda? O filme termina (de uma maneira incrivelmente linda apesar de chocante) e eu não sei mais o que é um filme do Ikeda. Eu só sei que saí de uma obra-prima do Cinema e quem fez ela foi o meu amigo que eu conheço e continuo conhecendo.

Ricardo Pretti
http://grupodesvio2.zip.net/index.html

Comentários

Anônimo disse…
ai que lindo seu texto!
eu tb acho o Má muito triste (como vc disse: melancólico). Vms fazer coskinha nele pra ele rir um pouco? bjs. daia
Anônimo disse…
não acho o ik triste. só sério.
cosquinha faz ele rir sim. mas mecanicamente.

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