O “CINEMA DO AGRESTE” (II): A PARTEIRA


O “CINEMA DO AGRESTE”

A PARTEIRA
de Catarina Doolan Fernandes




O cinema do RN encontra-se em franco estágio de desenvolvimento, com a realização de curtas e de festivais de cinema, potencializados por uma associação de realizadores ativa e vibrante, em torno da ABD/RN. Em 2016, o Cine Natal foi um edital de audiovisual da Prefeitura de Natal, em parceria com os Arranjos Regionais da Ancine. O edital se resumia ao apoio de 6 curtas de R$50mil cada. Muito pouco, mas um oásis criativo no cinema do RN. Os curtas produzidos por esse edital começam a ficar prontos e dar os seus frutos.

Um deles é o lindo A PARTEIRA, de Catarina Doolan Fernandes. Como se expressa no título, é um documentário sobre Donana, uma parteira do interior do Rio Grande do Norte. No entanto, o curta não se concentra propriamente sobre as características do trabalho nem tampouco sobre a defesa incondicional do parto natural. Não é que o filme não aborde essas questões mas não o faz por meio de uma linguagem didática ou panfletária que tenderia a um institucional. Catarina prefere observar, ouvir e conviver com Donana, parteira e mulher, mas, em vez de jogar esses elementos para o primeiro plano, prefere discuti-los à luz de sua existência, de sua forma particular de estar no mundo.

É possível dizer que A PARTEIRA é um livre ensaio sobre Donana, mais do que um filme sobre o feminismo ou o parto natural. Um filme sobre todas as dores e delícias de tentar ser uma mulher livre no interior do Nordeste. Penso neste filme em torno da questão da liberdade, na possibilidade de sermos nós mesmos. E nos limites que esbarramos diante disso, não apenas de uma sociedade conservadora repressora mas também diante de nós mesmos, de nossos limites e contradições. Quando Donana intermedia outras mulheres a dar a luz, o filme acaba nos falando sobre a natureza, sobre a continuidade mas também sobre a renovação, sobre a solidariedade e o amor. Ou seja, A PARTEIRA é um filme fortemente marcado pela consciência em que Donana reflete sobre sua condição feminina, mas o filme apresenta essa questão não apenas sob a mobilização política em torno de manuais de panfleto com palavras prontas, mas principalmente sobre um viés existencial, sobre seu modo de viver, sem nunca escapar de uma dimensão humana e afetiva.

Donana é uma mulher nordestina. Entendeu desde cedo que precisava trabalhar para não depender de homem. Encontrou um trabalho que se adequasse à sua condição de mulher, embora não tivesse filhos. O filme é todo sobre Donana: a personagem é extrovertida, faladeira e cativante, logo conquistando o público. No entanto, aos poucos, de forma delicada, o curta vai deixando em segundo plano essa primeira imagem de Donana e vai misteriosamente adentrando em outras zonas de cinza, tornando-a uma personagem não simplesmente simpática aos olhos dos espectadores mas extremamente complexa. O grande mérito do filme é, em vinte minutos, conseguir adentrar em outras camadas de Donana e, de forma respeitosa, entender um pouco algumas de suas angústias e dores.

O ápice dessa tendência é a maravilhosa cena final, em que Donana regressa a um cenário de sua infância, um lago em que ela costumava pescar para ter o que comer. A água e a infância conferem uma paisagem interior em que a personagem pode mergulhar numa reavaliação do seu passado, de suas angústias e do que conseguiu conquistar com muita luta. À medida em que aborda temas mais espinhosos sobre sua natureza, Donana discretamente mergulha nesse lago. Acabamos associando essa imagem com a do próprio parto e de sua condição de parteira. A velha Donana volta a ser criança, dá a luz a si mesma nas águas rasas desse lago-mundo (conforme a imagem que acompanha esse post)

Ao escapar do didatismo e do panfleto, optando pelo afeto em torno de sua personagem, ainda que o filme esteja longe de promover um olhar romantizado sobre sua condição mas mostrando suas dores, lutas e angústias, A PARTEIRA contribui para outros olhares sobre o interior do Nordeste e sobre a condição feminina, por meio de uma posição discreta mas de grande sabedoria e delicadeza por parte de sua realizadora.

A PARTEIRA recebeu o prêmio de melhor curta da Mostra Brasil no Curta Taquary, onde foi recebido com entusiasmo.


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