CARTA A CRISTIANO BURLAN – ELEGIA DE UM CRIME




CARTA A CRISTIANO BURLAN – ELEGIA DE UM CRIME

Desde que realizei a Mostra Cinema de Garagem em Fortaleza em 2014, me aproximei um pouco do Cristiano Burlan. Não chego a dizer que somos amigos, mas de vez em quando trocamos mensagens e nos falamos. Em 2017, eu o levei para Fortaleza para debater o ANTES DO FIM, no Cine Rebuceteio. Na ocasião, conversamos um pouco sobre o ELEGIA, que ele estava montando. Ele estava bem aflito, dizendo que era o filme mais difícil que já havia feito e que esperava que pudesse chegar ao fim. Acabei acompanhando um pouco, a um certo tom entre a distância e a proximidade, um pouco do processo do filme. E, quando ele ficou pronto, e finalmente o vi, fiquei motivado a escrever para o Burlan. Não é uma crítica, é uma carta. Ao mesmo tempo, não é o texto de um amigo íntimo. Não deixa de ser um pouco uma crítica, uma certa análise do que vi. Enfim, não sei bem o que sou do Burlan, nem sei ao certo o que aquelas palavras são.

Agora, que o filme está em cartaz, Burlan me pergunta se cheguei a publicar aquele texto. Eu nem via aquelas palavras como um texto mas ele tinha razão: não deixavam de ser. Será que mereceriam ser disponibilizadas para o público? Num primeiro momento, achei que não. Depois, achei que talvez sim, por um simples motivo: o de estimular que o filme, agora em lançamento comercial, seja visto. ELEGIA DE UM CRIME merece ser visto, porque, nas entrelinhas da difícil questão pessoal do realizador, ele fala sobre o contexto do país em que vivemos. A forma como Burlan conjuga isso nesse filme, especialmente na belíssima sequência final, é notável.




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Carta a Cristiano Burlan (22/08/2018),

Burlan, você já deve estar viajando. Não consegui resistir e vi o filme ontem mesmo. O pior é que quase não consegui dormir depois do filme, que acabou depois das 2h da madrugada. Ainda não sei o que dizer. Poderia falar das opções de enquadramento, da sobriedade do tom, da forma frontal como você aparece no filme (um rochedo que às vezes balança), poderia falar sobre opções de corte, ritmo, de crescendos dramáticos e quase-situações de suspense, das opções sonoras, bastante discretas mas bem pontuais – inclusive com efeitos sonoros e música. Poderia relacionar com toda uma literatura de filmes-de-primeira-pessoa e a autobiografia no cinema – tema que muito me interessa. Da tradição recente de filmes-de-busca, do dispositivo inacabado. Das fotos e das entrevistas. De como filmar confissões. Do uso do close. Da mídia (a TV, a repórter). Da imagem final. Mas, ao final do filme, acima de tudo isso, uma outra pergunta me perturba ainda mais: do que serve tudo isso? Pra que serve esse conjunto de pretensas análises diante de um filme sobre um diretor que filma a busca pelo assassino de sua mãe? A única coisa que consigo dizer - pelo menos agora – é que achei que é um filme sobre o amor. Haviam me dito que era um filme sobre vingança, mas não, não vi assim, discordo radicalmente disso – eu o vi como um filme-de-amor. Uma carta. É um filme sobre o amor e também sobre a impotência do cinema. O amor e o cinema parecem muitas vezes pequenos e impotentes diante da crueza e da crueldade do mundo. Seu filme tem uma atualidade desconcertante, principalmente no momento em que vivemos hoje no nosso país, sobre o contexto de visibilidade do feminicídio, sobre nossa falta de afeto, sobre a impunidade do nosso judiciário. É um olhar íntimo para as dificuldades do nosso país, para além de qualquer análise sociológica: a periferia está ali, nos corpos, nas casas. E, para além desse contexto, o que mais me toca no filme é a maneira frontal, é a concretude que você imprime no registro dessas imagens, na abordagem direta e franca com as pessoas. Parece um western, parece um filme policial dos anos trinta, parece o cinema de Walsh e Dwan, nessa concretude, você parece aqueles herois solitários que vagam em busca da verdade e de respostas e se perdem na poeira do espaço. Há uma ética clássica, muito frontal, quase como um Rastros de ódio (digo no sentido da busca, pois não há “índios” no seu filme, todos somos “nós”). Mas lá vem eu falar de cinema de novo, de filmes e diretores, tudo bobagem, coisa de crítico. A verdade é que não sei o que dizer diante de seu filme. Mesmo sendo um filme muito duro, fui frequentemente tocado pelo filme, e também em momentos de grande singeleza, como um menino brincando no quintal, e especialmente, principalmente, os planos das roupas estendidas no varal, secando ao vento, esse vento pouco que mal as faz tremular, mas elas secam mesmo assim. Sinto (suponho) que esse filme sintetiza sua busca no cinema e na vida: ele avança os vários méritos de Mataram meu irmão, mas aqui com mais precisão e sobriedade, mais amadurecido. E para mim, curiosamente, ele deve ser visto junto com Antes do fim, esse filme etéreo que flutua com uma beleza inacreditável, quando nos damos conta de sua trajetória. Que espero que esteja só começando. E que espero que seja lançado nos cinemas logo, para que mais pessoas possam ver. Eu espero que seu filme possa ser visto. É isso, pena que não vamos nos ver nesta semana em São Paulo, mas um dia desses nos esbarramos. Um abraço e boas filmagens, curiosamente você no Nordeste e eu em São Paulo... abs ikeda.



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