(TIRADENTES2023) As linhas da minha mão
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
As linhas da minha mão
de João Dumans
Mostra Aurora
É curioso como, pelos caminhos
insondáveis do destino, que eu (infelizmente) só conseguisse assistir a As linhas da minha mão (o filme a abrir
a Aurora na segunda-feira) após Solange (o filme que encerrou a Aurora
na sexta), e após o resultado da
premiação. A comparação entre os dois filmes diante dessa troca de ordem me fez
refletir sobre as opções da curadoria desta Mostra de Tiradentes 2023, e, em
como, no cinema, na arte e na vida, muitas vezes, a ordem dos fatores altera o
produto.
E é possível compará-lo não
apenas com Solange mas com um
conjunto de outros filmes desta Mostra de Tiradentes em torno de retratos. Filmes que constroem e
descontroem representações de retratos.
Podemos começar pensando em O cangaceiro da moviola, que propõe um retrato a princípio um tanto convencional de seu
personagem, o montador Severino Dadá. No entanto, o filme de Rocha Melo está
interessado em seu personagem na medida em que ele permite que o cineasta trace
um percurso pela história do cinema brasileiro. Este é um filme em torno de um
olhar sobre a História, e, nesse
sentido, o filme de Rocha Melo desconstroi uma história canônica centrada em filmes-marco
e diretores-autores para se abrir para outras possibilidades de incorporar
outros métodos, abordagens, agentes e objetos nesse circuito, e daí reside sua
contribuição.
Já comentei o quanto Peixe Abissal abandona as ancoragens
biográficas para promover um mergulho na vida-obra de seu protagonista Luís
Capucho, entrecruzando vida e obra de maneira orgânica e fluida. Mas, ainda que
rompa com a biografia totalizante, ainda assim, é possível identificar linhas
claras de conexões entre a vida do autor e os temas mais marcantes de sua obra.
Mas aqui no caso de As linhas da minha mão, a opção de João
Dumans é muito mais radical, tanto em termos do olhar para sua personagem
quanto pelas relações intrínsecas entre documentário e ficção, ou ainda, se
preferirem, entre o que existe previamente à presença da câmera e o que é dispositivo
criado pela mise en scène do filme quando a câmera é disparada. O filme também
fala de uma artista-criadora (Viviane de Cássia Ferreira), mas a opção pelo fragmento é tão marcante que chegamos
a ter certa dificuldade em entender qual o seu trabalho ou quais os eixos de
sua criação. Em comparação com os dois anteriores, é nítido como o filme é
muito mais radical em examinar a relação entre vida e obra de uma artista, em
movimento de contínua potência, por meio de uma aposta incondicional pelo fragmento,
pelo incompleto, pela deriva, pelo percurso. Por incorporar a margem e o
excêntrico como um elogio à parte em vez do todo. Em vez de um percurso pela
História, ou de um passeio fluido entre temas-função, As linhas da minha mão aposta de forma plena nessa incompletude do
presente como gesto fundador de uma dramaturgia. São pequenos momentos, estilhaços
aparentemente pequenos ou isolados que nos permitem aproximar dessa personagem
de si: por exemplo, Viviane não se preocupa em nos apresentar os grandes temas
de sua criação mas é como se um momento aparentemente anedótico ou passageiro
de sua vida, como um encontro fortuito numa noite em Milão em uma viagem de
trem, nos revelasse as potências de sua vida.
Mais Foucaultiano ou Deleziano
impossível. Há um momento em que Viviane e seu amigo leem um trecho de
Nietzsche em que a artista responde a provocação proposta pelo texto, afirmando
que prefere ser uma desertora a um pastor, líder de um rebanho de ovelhas. Nem
líder nem seguidora, mas aquela à parte. Essa aposta na micropolítica, no
instante precário como fundador, marca um gesto ético de se aproximar de uma
personagem aparentemente em posição de vulnerabilidade (uma mulher com
transtornos psíquicos) para vislumbrar o que há de potência, ou ainda,
integrá-la ao mundo, como parte de uma dramaturgia do comum.
Nesse sentido, As linhas da minha mão dá continuidade a
um movimento do chamado “novíssimo cinema brasileiro” em retratar pessoas em
situação de vulnerabilidade por um contexto de potência, tornando fluidas as
relações entre documentário e ficção, por meio de um cinema do afeto. Dumans
não procura tornar sua personagem uma vítima de um sistema social opressor mas
tampouco procura caracterizar sua personagem a partir de um perfil psicológico
a nível clássico. É possível ver As
linhas da minha mão como desdobramento de uma longa linhagem do chamado
novíssimo cinema brasileiro que passa por filmes (mineiros) como O céu sobre os ombros, A vizinhança do Tigre ou mesmo Baronesa.
Por isso, achei curioso quando,
em um dos debates, o curador-Diretor Artístico de Tiradentes, Francis Vogner
dos Reis, expôs, quase em tom de desabafo, uma contrariedade em relação àqueles
que dizem que a Mostra Aurora se centra em torno do mesmo tipo de filme, uma
vez que filmes como Rosa Tirana ou Cervejas no Escuro comprovam que a
Aurora sempre procurou se oxigenar com outros gestos criadores. Se isso com
certeza é verdade, ao mesmo tempo é também possível observar uma linhagem característica.
Digo isso porque considero que certamente As
linhas da minha mão, que recebeu o principal prêmio da Mostra Aurora, não
deixa de ser um produto sedimentado pelas próprias tradições de Tiradentes, e
não imagino outro lugar do mundo onde esse filme tão delicado pudesse ser
melhor compreendido do que sob o Cine-Tenda.
Faço essa observação pensando
nos possíveis ecos ou rastros do chamado “novíssimo cinema brasileiro” no
cinema brasileiro da década de 2020, agora sob os ataques do cinema identitário.
Talvez sua delicadeza e sua aposta nas micropolíticas do afeto ainda tenham ressonância
no cinema brasileiro de hoje, num momento em que as estratégias de choque
talvez possam se diluir no ambiente de reconstrução pós-Bolsonaro.
Pois é curioso pensarmos em As linhas da minha mão logo após ter
visto Solange. Vendo esses dois
filmes tão centrados em suas protagonistas (fechados em close em seus
universos), Solange parece até um
tanto determinista, uma vez que, desde o início, Solange parece estar condenada
a andar em círculos procurando reunir os rastros de um passado que já não é
mais o seu. Falamos anteriormente que a grande questão trazida por Solange é sua solidão e sua falta de
liberdade. A vocação documental do filme de Dumans parece abrir uma enorme
janela que acalanta sua personagem, que permite ouvi-la e que reconfigura seu
próprio universo. A personagem não é exposta ao martírio do mundo pela
indiferença dos que a rodeiam, mas o “dispositivo” fornece adubo para que o
universo da protagonista possa desabrochar em sua potência, em suas dores e
delícias. Essa é a beleza das estratégias de abordagem do chamado “novíssimo
cinema brasileiro”, esse desejo improvável em apostar que ainda assim, mesmo
diante de tudo, é possível existir de forma plena, aceitar a si mesmo, esse
caminho de autodescoberta com todas as suas precariedades, inclusive em relação
ao próprio filme. Ou seja, não fazer filmes perfeitos mas incorporar suas
imperfeições como gesto ético de aceitar o mundo como carne.
Ao mesmo tempo, As linhas da minha mão não é nada
ingênuo como mise en scène, porque Dumans é um observador atento e já
incorporou as principais lições dessa pequena tradição de fluidez entre ficção
e documentário no cinema brasileiro. Vejamos o início do filme, em que a câmera
de Dumans procura um lugar possível para dançar junto com o corpo da
protagonista, e não consegue enquadrar esse corpo que sempre lhe escapa. Mas, à
medida que o filme caminha, essa câmera, o olhar de Dumans, parece encontrar o
seu lugar. Essa relação de distância e proximidade nos aponta para a
consciência do seu próprio processo de construção, ou ainda, para uma
intimidade fabricada. Ora, parece claro que não se trata de uma câmera
simplesmente a filmar uma conversa entre dois amigos (como Lembro mais dos corvos, o belo filme de Gustavo Vinagre com Julia
Katharine) ou mesmo uma entrevista de um documentarista com um retratado (desde
os filmes de Coutinho até outros de talking heads). Aqui, Dumans encontra um
dispositivo adequado para que sua presença seja discreta – um pouco aos moldes
de O céu sobre os ombros, ou A vizinhaça do Tigre e Baronesa. O realizador e a personagem
engendram um “dispositivo” em que seja possível que a personagem encene seu
próprio universo, ou seja, que dispare potência para as representações de si.
Um sinal das sutilezas das estratégias de Dumans é como, em algumas vezes, o
filme aposta em longos planos de Viviane e, como em outras, ele corta para um
campo-contracampo (o amigo que lê trechos de livros ou o outro amigo que ela vai
visitar e que no fundo serve mais como disparador para que Viviane possa falar,
tanto que, em certo momento, ela pede para que ele não a interrompa). Parece
que Viviane está ali simplesmente a falar, mas é claro que existe um profundo
cuidado da mise en scène em engendrar um dispositivo discreto para que o
universo da Viviane possa aflorar em potência diante de uma câmera. Ou seja, é
preciso pensar As linhas da minha mão
não apenas pelo que Viviane diz mas também pelas estratégias que tornam
possível que ela consiga se expor dessa forma, ou seja, não apenas por sua
temática mas por sua mise en scène.
O que acho curioso é que nesse
dispositivo extremamente contemporâneo de Dumans persiste algo de clássico, que
é a ideia de um esmerado trabalho para produzir o efeito de invisibilidade da
presença da mediação do realizador. No cinema clássico, a gramática da
transparência e da identificação produz esses efeitos. No caso desse cinema
contemporâneo, o dispositivo de vocação documental produz um efeito de cinema direto,
de “verdade” ou aderência plena ao real, quando na verdade se trata de uma
construção mediada, ou seja, um dispositivo que empodera porque evidencia
sutilmente uma plena consciência de sua personagem do quanto e como ela
pretende se expor. O que há de clássico é esse desejo do autor-diretor-mediador
em apagar os rastros de sua presença na elaboração da mise en scène.
Dito isto, me interesso pelo
filme justamente nos momentos em que o instante do fragmento aponta, de forma
radical, para a incompletude do momento, abandonando de forma plena qualquer
ideia de biografia ou de ancoragem psicossocial. Quando a montagem procura
blocar o filme com outras intenções aparentemente mais nobres, meu interesse se
reduz. Creio que a montagem algumas vezes reduz a potência dessa aposta radical
no fragmento. Enfim, como a vida, As
linhas da minha mão é repleto de pequenas faíscas, de momentos de beleza de
epifania em situações aparentemente simples. Quando esses instantes irrompem,
somos tomados por surpreendente beleza – esse é todo o encanto de certa
vertente das “micropolíticas do afeto” do “novíssimo cinema brasleiro”, que
pareciam estar adormecidas, mas que comprovam que ainda podem render bons
frutos.
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