(TIRADENTES2023) CERVEJAS NO ESCURO
COBERTURA DE TIRADENTES 2023
CERVEJAS NO ESCURO
de Tiago A. Neves
Mostra Aurora
Cervejas no escuro poderia, a princípio, parecer um corpo estranho
quando pensamos nas marcas estilísticas mais diretamente identificadas à Mostra
Aurora em Tiradentes (o cinema de fluxo e suas derivações), mas, na verdade,
trata-se do filme que talvez mais potencialize o retrato do Cinema Mutirão – temática utilizada como
ponto de partida para a curadoria deste ano. Neste filme, após a morte do
marido, uma senhora idosa (lindamente interpretada por Edna Maria) resolve
fazer um filme mesmo sem nenhuma experiência prévia e agrupa um conjunto de
amigos próximos numa cidade do interior da Paraíba para ajudá-la na missão.
O plano inicial nos situa em
torno da condição do luto. Mas não estamos no tom cerimonioso de Caetana, brilhante curta de Caio
Bernardo, também rodado no interior da Paraíba (em Coxixola), premiado pela
Foco em Tiradentes em 2019, nem mesmo na dor crua e pungente de A gente acaba aqui, de Everlane Moraes,
que nos remete, direta ou indiretamente, ao pranto da pandemia e das mortes de
um sentido de Brasil. Mas, por meio de um plano sequência que me lembrou um
pouco de Baile Perfumado, o prazer
pelo cinema se conjuga com o prazer pela vida, mesmo diante do luto. Dona Edna
resolve filmar. Quando Dona Edna se empodera, mesmo diante do luto, para
recomeçar sua vida de outro jeito, recusando o que se espera (ou seja, a
sociedade, inclusive sua própria filha) de uma “mulher de sua condição”, me
parece que esse gesto simboliza o próprio Brasil, o próprio cinema brasileiro,
que, da maneira possível, desperta do seu luto e resolve voltar a viver e
criar. E que talvez esse desejo possa ser disparado por meio de um apagão.
Dona Edna reúne os amigos
próximos e decide filmar algo que reúne as lembranças de sua própria vida (o
amor) e as ruínas de sua própria cidade (a história de Princesa Isabel). Mas,
para isso, ela precisa saber lidar com as circunstâncias concretas da criação.
O filme passa a assumir um olhar ingênuo de metalinguagem da trupe tentando
fazer um filme, meio que aos moldes de um Através
das oliveiras, como se fosse um Kiarostami filmado em pleno sertão
paraibano, mas com toda a galhofa e a picardia da cultura popular do interior
do Nordeste e dos ecos do nosso Cinema de
Bordas. Pois Tiago Neves está do lado dos personagens em sua opção ética de
fazer desse filme uma comédia popular.
Se o crítico convidado João
Campos associou o filme ao teatro épico brechtiano, prefiro acrescentar os ecos
do teatro popular brasileiro dos anos 1960 à moda de um Vianinha. Ou ainda, com
o gesto de um filme tão singelo quanto Ladrões
de Cinema, de Fernando Coni Campos (para embarcar na carona do sobrenome do
crítico citado), em que uma turma de amigos da favela rouba uma câmera de uma
equipe de filmagem estrangeira para filmar o seu próprio Carnaval no morro. Mas
aqui, no Brasil pós-governos Lula, Dona Edna não precisa mais roubar a câmera. Em vez de roubar, ela se apropria dos meios de produção,
geralmente associados aos contextos hegemônicos de produção de imagem. Após as
transformações do digital, os requisitos técnicos e de acesso ao material
físico já não são mais barreiras de entrada tão visíveis quanto no filme de
Coni Campos, pois o Brasil e o cinema brasileiro já são outros.
Dona Edna se apropria das
estruturas de produção anteriormente associadas à cultura dominante para contar
as suas próprias histórias. Talvez essa ruptura esteja ligada à própria
trajetória de Tiago Neves, esse nordestino cuja família veio para São Paulo, e
que agora retorna à Paraíba para fazer seus filmes, por meio de um projeto
muito frondoso, que é o Cinema
Instantâneo. Não se trata mais do jovem nordestino que vem para São Paulo
para encontrar o seu lugar no mundo, nos meandros de uma longa linhagem que vai
de Viramundo, de Geraldo Sarno, a A hora da estrela, de Suzana Amaral. Mas
do retorno. Penso, então, nas possíveis conexões entre Diadema (interior de SP,
região do ABC(D), onde muita coisa começou) e Princesa Isabel (no sertão
paraibano, que chegou a sofrer até uma intervenção federal no conflito de João
Pessoa). Penso, também, nesse movimento improvável entre interiores em
trânsito, como é o caso do cinema de Taciano Valério ou de Lucas Sá.
Pois o Nordeste visto por Tiago
Neves não é mais meramente o lugar do atraso, do cangaço, da caatinga ou da
seca. Dona Edna não faz o filme que gostaria e, mesmo que ganhe o prêmio, não é
isso o que importa, mas sim as cervejas no bar – talvez o mesmo, ou outro bar
do início do filme, onde tudo começou. O luto permanece lá na casa de Dona
Edna, mas ela tampouco é a doce e sóbria Dona Sebatiana, do sensório Girimunho, que testemunha a morte como
processo natural do fim de tudo. Ela resolve arregaçar as mangas e se lançar ao
mundo, recomeçar, ainda que possível. Ela está menos procupada em se despedir
ou se lamentar do que foi mas está desejosa em abraçar o que ainda está por
vir, mesmo assim. É desse jeito que essa galhofa aparentemente despretensiosa
de Tiago Neves se revela um legado que inesperadamente nos joga luz não apenas
para a força do mutirão como movimento social mas especialmente para uma
postura ética quanto aos desafios da reconstrução que precisamos superar após o
luto e o apagão de todo um país. E o papel da Cultura diante disso.
p.s.: dedico este texto à
professora Dácia Ibiapina, membra do júri que premiou Edna Maria com o prêmio
Helena Ignez.
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