(IFFR2022) Met mes
COBERTURA DO FESTIVAL DE CINEMA DE ROTERDÃ (IFFR2022)
MET MES (The Photo
Camera)
de Sam de Jong
(Holanda, 2022, 79 min)
Mostra Tiger Competition
Met mes parte de um
interessantíssimo ponto de partida, que se remete a uma complexa questão moral.
Eveline decide abandonar o fútil programa de televisão em que é apresentadora
para passar a filmar documentários sobre questões sociais relevantes. Para
isso, investe suas economias na aquisição de uma moderna câmera de vídeo. Ao
sair para realizar suas primeiras filmagens, sua câmera é furtada, numa jogada
tramada por dois jovens estudantes que querem arrumar dinheiro para comprar um
novo apetrecho. No entanto, a seguradora não pode ser acionada em caso de furto
mas apenas em roubo. Assim, Eveline inventa uma mentira para se safar: diz que
ela foi atacada por um jovem que a ameaçou com uma faca. Quando o jovem é
capturado ao tentar vender a câmera, percebe que sua ação poderá ter graves
consequências devido à acusação, ainda que inverídica, de Eveline.
Essa grande sinopse pode passar
a impressão de ser um drama realista sobre um encontro inesperado e uma tomada
de consciência, aos moldes de um dos decálogos do grande mestre Kieslowski. No
entanto, não é esta a opção do diretor holandês Sam de Jong. Ao contrário, ele
busca enfatizar a ironia da situação, uma vez que esgarça a vocação realista de
seu conto moral para hiperestilizar seu filme, como se fosse um dos programas
de televisão de gosto duvidoso apresentados por Eveline. Sua estética,
portanto, aprofunda esse mal-estar: sem se perceber disso, a bem intencionada
Eveline está profundamente contaminada pela ideologia de seu programa, sendo
incapaz de abraçar as questões sociais que ela tanto almeja. Ao mesmo tempo,
seu individualismo ganha inesperado paralelo com a posição do estudante, que
furta a câmera motivado por um mero desejo fútil de consumo. Assim, não há
propriamente vítimas nessa relação dupla, mediada pelo simples egoísmo, desejo
de consumo e oportunismo, de ambas as partes. As instituições (a polícia, a
escola, a família) parecem não estar muito preocupadas em nada além da
manutenção de sua própria imagem institucionalizada, seguindo friamente as
normas. Ao final, a ironia é que o filme de Eveline de fato acabou disparando
as questões sociais, mas por uma outra camada. A câmera é, no fundo, essa
espécie de faca, que atinge quem estiver por perto, motivada simplesmente pelo
seu interesse próprio.
De Song evita, portanto, as
conclusões moralizantes de seu conto de vocação moral. Não há, portanto,
possibilidade de redenção ou de tomada de consciência diante da iminência de
tragédia, mas simplesmente um acordo oportunista entre as partes em que ambos
podem “lucrar” com o acontecimento: este é o filme que está sendo feito diante
de nós. Mas até que ponto essa câmera-faca pode de fato ferir?
Com isso, surge uma última
observação. É curioso pensarmos na relação entre esse filme (Met mes – Com
faca) com Het mes (A faca), clássico do cinema holandês, realizado em 1961, por
Fons Rademakers (ver aqui). A direta relação entre os títulos (a diferença de uma única
letra) e a posição de prestigio de Rademakers na trajetória do cinema moderno
holandês permitem a proposição dessa associação entre esses filmes separados
por um intervalo de meio século. O filme de Rademakers também trata das
hipocrisias das instituições da sociedade holandesa, mas do ponto de vista de
um menino que não se identifica com seu meio, e que passa a esconder uma faca,
que representa sua revolta mas também seu refúgio, como se ela fosse sua única
verdadeira amiga. O humanismo de Rademakers se expressa por sua opção pelo
realismo, visto que o cineasta já havia sido assistente de de Sica e Renoir.
Seu filme é o avesso de um conto de fadas, mas uma experiência infantil
sombria, em que o diretor fica do lado de quem se opõe aos rumos do sistema,
ainda que seja uma ingênua criança que ainda não teve tempo de “crescer”.
Por sua vez, Met Mes propõe uma
crítica muito confortável ao sistema, incorporando em sua estética uma ironia
interna que acaba por reproduzir as representações visuais do ponto de vista do
sistema, ou seja, que provoca o espectador mais pelo choque visual do que pelas
repercussões morais da narrativa. Nesse caso, a ironia afasta o espectador de
uma reflexão crítica, naturalizando os dilemas éticos do filme, que tendem a
ser fetichizados por uma superfície sedutora, o que, a meu ver, acaba diluindo
a potência do embate ético proposto pelo filme.
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