ENTRE MIM E ELES: carta de Dércio Barros
CARTA ABERTA ESCRITA POR DÉRCIO BARROS SOBRE ENTRE MIM E
ELES
https://www.facebook.com/notes/d%C3%A9rcio-barros/entre-mim-e-eles/470222489716932
Ikeda, se isso fosse um artigo, eu o titularia
"Impressões pessoais sobre um cinema personalíssimo". Mas prefiro
pensar isso como uma carta, algo que abre um diálogo.
Desde que eu comecei a estudar cinema, houve pelo menos dois
momentos em que me foram apresentadas formas de se fazer-pensar cinema que eu
não sabia serem possíveis. Claro que também houve Akerman, Tonacci, Bressane,
Makavejev, Herzog, Tarkovsky etc, mas os que realmente me marcaram foram dois.
Primeiro Sganzerla. Ninguém tinha me avisado que o cinema
podia ser algo tão grandioso e eloquente sem aquelas explosões e tiros
hollywoodianos. Sim, foi uma descoberta bem primordial, até lá eu não tinha
contato nenhum com esse tipo de cinema, que se assume como verdadeiramente
político e esteticamente revolucionário. Ver o Zé Bonitinho fazer os
cabulosíssimos monólogos de SEM ESSA ARANHA foi uma experiência que me marcou
profundamente.
Mas (o assunto que realmente me interessa discutir aqui) não
muito depois, e mais ou menos ao mesmo tempo, eu conheci seus filmes e os
filmes Alumbramento. Do Alumbramento, me marcaram especialmente CINEASTA BOM É
CINEASTA MORTO e OS MONSTROS. E aqui de novo uma descoberta primordial: eu não
sabia que podia haver um cinema tão absurdamente intimista e eloquente, um
cinema em que as pessoas se expõem e são, na tela, muito. Ser você e ser muito.
Um amigo uma vez fez pra mim uma citação do Bergman (que eu não lembro de
cabeça) que dizia mais ou menos isso: pra fazer um bom filme, é necessário que
você mesmo esteja dentro dele. Até hoje OS MONSTROS é um dos meus filmes
prediletos (mesmo com todas as suas "falhas" e sua visível
precariedade, palavra que não uso à toa). Fiquei tão impressionado com o plano
sequência de dez minutos do CINEASTA BOM... que, infelizmente ou não, passei
meses tentando fazer o mesmo filme. Falhei miseravelmente.
Nos seus filmes, que eu conheci um pouco depois, mas ao
mesmo tempo em que eu assistia os vários curtas do Alumbramento, me
impressionou muito justamente essa maneira que você se põe no mundo e que você
se põe nos seus filmes, por que se por nos seus próprios filmes é se por no
mundo. Entendo perfeitamente seu fascínio pelo Mekas, e, pessoalmente, vejo na
postura de vocês dois muita semelhança. Pessoalmente, vejo seus filmes como um
lugar em que sua presença é tão marcante que não há mais uma distinção
obra-autor. Não há que se discutir quem é maior (a obra ou o autor?) nem se um
pode virar o outro com o tempo. No seu caso, há essa simbiose, a obra e o autor
são a mesma coisa, e se constroem juntos com o passar do tempo. Precariamente.
Precariamente porque somos humanos, somos precários. Filmar o seu próprio
apartamento (como você fez várias e várias vezes), filmar seu natal em família,
filmar seu regresso pra casa depois de não sei quantos anos, filmar o seu
próprio banho que seja: se filmar, e se por no mundo. Mas somos precários,
estamos muitíssimo longe de sermos perfeitos, de sermos
"cinematográficos" (na triste e deturpada visão de cinema de alguns).
Somos tristes, mas às vezes alegres. Temos problemas, temos dúvidas, e às vezes
temos opiniões e gostaríamos de dizê-las aos nossos amigos. Sua obra está
recheada disso, desses fantasmas pessoais, dessas melancolias, dessas alegrias
esparsas (ah! o carnaval...), dessas coisas que na verdade são muito muito
íntimas e, em tese, não pertencem à esfera pública do cinema. Mas não, pelo
contrário: o autor e a obra são um só, não há o que se separar, os dois
caminham juntos.
E então os filmes parecem ser assim reveladores de segredos,
todo filme seu parece um documentário sobre sua alma, uma excursão pelo casulo
de um artista. Casulo: o espaço hermeticamente fechado dentro do qual algo se
desenvolve, espera sair. O Casulo é também uma promessa: Casulo hoje, amanhã o
que? O Casulo é esse espaço individual, personalíssimo no qual nos
desenvolvemos, no qual nossa mente, nossa arte se desenvolve. Mas o Casulo é
dissecado, exposto em praça pública como o faquir da dor. Faquir da dor. Nos
maravilhamos com essa visão fascinante, que ocorre de maneira esteticamente
primorosa, como em ALVORECER, e às vezes de maneira (aparentemente)
hermética/formalista (mas igualmente bem sucedida), como em UM FILME ABSTRATO -
PARTE II; A WOMAN. AN AIRPORT.
AN ESCALATOR; e A BAG IN THE WIND.
Mas nem sempre o retratado é você mesmo. Às vezes o retrato
é mais amplo. Às vezes o retrato é um retrato da sua relação com o mundo. Vejo
isso nas diversas CARTAS AO CEARÁ e na CARTA DO CEARÁ, e também nos
cabulosíssimos DIÁRIO DE UMA PROSTITUTA e ISABELLA. Acho que é com essa linha
da sua obra que ENTRE MIM E ELES mais dialoga.
ENTRE MIM E ELES é grandioso. Grandiosíssimo. É um desses
filmes em que o retrato é o retrato de sua relação com o mundo, mas dessa vez é
algo muito maior. É o retrato de sua relação com seus amigos, com um cenário de
produção cinematográfica muito importante (que é sintoma de um tempo) e, por
fim, retrato de sua relação com o cinema. Não é à toa que o filme foi lançado
no Making Off um dia depois da estreia. Não vejo esse ato como uma simples
atitude interessante. Eu realmente achei isso do caralho, o filme exigia esse
tipo de distribuição, pensada também como extensão da obra-autor que é o seu
trabalho. Isso era preciso, distribui-lo "normalmente" não faria o
menor sentido quando se está discutindo justamente isso: o filme, o autor, o cinema
e suas relações.
O filme, o autor, o cinema e suas relações. Mas também os
amigos. O filme me pareceu quase como um pedido, uma súplica. Um momento em que
alguém olha pra trás e deseja enormemente que estivesse olhando o agora. Não
que haja um desejo saudosista que as coisas sejam hoje como eram ontem, mas há
essa vontade de que as coisas tivessem se desenvolvido um pouco diferente. Um
pedido, uma sugestão. Uma conversa muito íntima, em que você se senta com seus
amigos e fala francamente: eu gostaria que as coisas fossem mais assim. Não é
um making-of de OS MONSTROS, não consigo pensar o filme dessa maneira. Ele é,
na verdade, muitas outras coisas. Um diário, porque é o registro de um tempo;
uma carta, porque é uma mensagem, uma sugestão; um processo, porque se constroi
junto, sem se saber direito onde acaba, mas de onde começa e como se locomove.
Mas esse filme é também uma cápsula do tempo.
Ele funciona como funcionam as cápsulas do tempo: de
repente, nos é mostrado um passado que parece tão distante... naquela época
éramos outros, pensávamos diferente... e somos postos a raciocinar sobre quem
éramos ontem, quem somos hoje e o que fizemos nesse meio termo. Aqui outro
ponto do processo: o filme sugere uma reflexão. E aqui mais uma evidência da
carta: o filme tem um destinatário, apesar de ter muitos outros também.
Enfim, foi assim que eu me relacionei com seu filme. Talvez
eu esteja enganado, talvez seus desejos com ele sejam outros, mas acho positivo
esse retorno - essa leitura pessoal que se faz de um filme. Espero que ela
tenha sido, se não condizente com sua visão de si, pelo menos interessante.
Abraço,
Dércio Barros
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