AMOUR
Amor
de Michael Haneke
Como filmar a morte? Não sei se Haneke parece contribuir
muito. Como filmar um personagem que se deixa morrer? O corpo que apodrece e
definha. Decerto que não há exploração da miséria nem mesmo recurso de
vitimização. Mas ao mesmo tempo há um pouco disso sim. Fala-se em corpo, mas
AMOR não é o filme mudo de Brakhage que dilacera corpos como epistemologia do
olhar (THE ACT OF SEEING WITH ONE'S OWN EYES) nem O SANGUE DAS BESTAS, de
Franju, que mostra que somos todos cúmplices dos torturadores de Auschwitz, nem
mesmo RESSURREIÇÃO, de Arthur Omar, que, provocativo, mostra corpos
dilacerados, assassinados, com uma música de êxtase que insere mil camadas ao
discurso fílmico. Se AMOR aborda os limites da violência como intrínseca à
natureza humana, tema de boa parte da filmografia de Haneke, seu tom sóbrio,
sua mise en scene discreta, pelo menos retira de sua filmografia um certo tom
de espalhafato. Se esse rigor e essa concisão cênica nos fazem remeter a A FITA
BRANCA, aqui não cabe nem a genealogia política do mal nem o uso dos
exteriores: o claustrofóbico AMOR é todo resolvido nos interiores, voltado para
dentro de seus dois personagens. Tampouco é o cinema de Bergman, que se afoga
nos rancores expressos nos diálogos e na psicologia, entrecortados por delírios
metacinematográficos. Se a concisão e a simpicidade de AMOR podem ser vistas
como um elogio, um passo dentro da filmografia desse realizador que sempre
mexeu com temas fortes, ao mesmo tempo que AMOR é um filme duro, ele se insere
em todas as convenções que podemos esperar de um filme como esse, inclusive nos
momentos em que ele usa nossa compaixão – um tapa na cara, uma visita de um
ex-aluno que possui todo um futuro pela frente, a filha que chora impotente na
janela, um álbum de fotografias, etc. AMOR pode ser até visto como bem-sucedido
na criação de climas, como um passo na maturidade de Haneke como artesão, mas
minha recusa ao filme não é uma recusa pelos méritos de sua encenação, mas uma
questão primeira, uma questão moral. Como filmar a morte? Ainda que não
espetacularize a tragédia, AMOR é bem comportado demais, desafia pouco o
espectador, não o transforma, apenas aponta para o suposto acerto de suas
decisões; é um filme trancafiado em torno de si mesmo, convicto demais de sua
correção, ou seja, é um filme equivocado politicamente, é um filme reacionário.
(Será que esse casal é a União Europeia?) Ao fim da projeção de AMOR, fico
pensando, por exemplo, em A GOELA ABERTA, de Pialat, que filma uma morte, mas
que contamina a tudo com cheiro de enxofre, com uma enorme curiosidade, até com
certo ressentimento, ressentimento esse que acaba deixando revelar – somente
por suas bordas, ou seja, pelo que transborda
– paradoxalmente o seu amor, seu desejo pelo mundo, em remexer essa caixa de
ferramenta velha de que são feitas as coisas e que poucos se aventuram a abrir,
pois não é nada agradável. Mas AMOR me parece conformado demais com a precisão,
com a concisão, com o acerto, com o comedimento, como essa languidez com que
acompanha um tema não agradável mas sem que cheire tudo a enxofre, de forma
razoavelmente higiênica, de modo que Haneke faz um filme correto, coloca todas
as notas no lugar, nos faz esperar pacientemente até a hora solene de
apodrecermos e assistirmos, no ar condicionado, nossa vida (e o filme) acabar,
como se fôssemos testemunhas fúnebres de nós mesmos.
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