INFERNINHO: O EPITÁFIO DO “CINEMA AFETIVO”



INFERNINHO: O EPITÁFIO DO “CINEMA AFETIVO”




No início dos anos 2000, o cinema brasileiro passou por um processo de mudança, em que surgiu uma geração de realizadores que buscavam outras formas de expressão para além do “cinema da retomada”. Presenciamos uma “virada afetiva”, em que o afeto e a amizade eram formas de resistência diante de uma sociedade massificada. Um cinema que surpreendia pela forma como encenava as potências desses afetos precários. Filmes como O céu sobre os ombros, Esse amor que nos consome, A vizinhança do Tigre, Morro do céu, e vários outros são exemplos desse “cinema afetivo”. Os Coletivos apontavam para outros modos de fazer, mais permeáveis e menos contaminados pelos ditames do mercado. O Alumbramento certamente foi um dos mais notáveis representantes dessa “virada afetiva”, em um filme como Estrada para Ythaca (2010).

Hoje vivemos outro momento. O afeto, a rarefação, a sutileza e a delicadeza cederam espaço para um cinema de direta intervenção política, baseada nos lugares de fala e na representatividade das pautas identitárias. A “virada afetiva” da geração do “cinema de garagem” foi substituída, a partir de meados desta década, por uma “virada militante”. Os principais festivais de cinema, como Tiradentes e Brasília, estiveram recentemente tomados por essa guinada. Outros festivais de porte médio foram seguindo essa tendência. As pautas identitárias tomaram o poder, pelo menos no circuito de nossa bolha.

É como se fosse emitida uma sentença: o “cinema afetivo” morreu. Ele não morreu de fato, pois há reminiscências em filmes recentes, como Arábia ou Temporada. Mas é como se essas questões já estivessem velhas ou anacrônicas no contexto dos festivais de cinema de meados dos anos 2010, que precisam se adaptar aos novos contextos sócio-políticos e fazer com que o show continue (as pautas precisam mudar, os festivais precisam se renovar – é o que dizem).

Se é verdade que o “cinema afetivo” morreu (ou se “morreu mas passa bem”), talvez seu epitáfio seja com o filme INFERNINHO, realizado pelas cinzas do coletivo Alumbramento. Este é o último filme realizado pelo Coletivo Alumbramento, que se dissolveu. O Alumbramento acabou mas permanece numa espécie de espólio, pois sempre há algo que fica, que permanece mesmo diante do fim. INFERNINHO é um filme sobre o fim – mas não somente sobre o fim do Alumbramento, ou mesmo sobre o fim de um certo sentimento de cinema em Fortaleza, onde reinava o descompromisso guiado apenas pelo prazer em fazer cinema e estar junto, mas é também o fim de um certo momento do cinema brasileiro – a que me refiro aqui por meio do termo “virada afetiva” (poderia ser também “cinema de garagem”). INFERNINHO é comovente, pois representa talvez o mais alto estágio de amadurecimento desse coletivo cinematográfico, momento que representa justamente o seu fim.

Muito poderia falar sobre a contribuição de INFERNINHO neste momento em que vivemos, e sua condição trágica, o rigor de sua consciência do fim. Mas agora apenas faço esses breves apontamentos, aproveitando o lançamento do filme, e aguardo um pouco mais, para a publicação de meu livro sobre o Coletivo, programada para julho/2019.

Sinto-me um dos críticos que mais militou por essa “virada afetiva” no cinema brasileiro de meados dos anos 2000. Agora, sinto-me velho e anacrônico para me inserir nesse novo momento do cinema brasileiro. Tenho visto pouca coisa que realmente me surpreende e me motiva a escrever os textos apaixonados que escrevia antes. Mas não é porque os filmes de agora são menos interessantes do que os de uma década atrás, mas simplesmente porque eu não tenho a mesma paixão por eles. Já está surgindo uma nova geração de críticos e de curadores que carrega a missão de levantar o debate dos novos caminhos do cinema brasileiro, e de seus desafios. Desejo todo sucesso a eles, e vou me retirar (na verdade, já me retirei há um tempo) desse ringue de debates, para me debruçar ainda um pouco mais sobre “a minha velha geração”, sobre as características dessa geração garageira ou novíssima (então novíssima, agora já velha) do início dos anos 2000, pois ainda há muito a se falar sobre essa cena que – é o que dizem – já acabou.

E se é mesmo verdade que essa geração acabou, seu epitáfio foi escrito em INFERNINHO.


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