A mãe e a puta
de jean eustache

De alguma forma, ao acabar de rever a mãe e a puta, de jean eustache, tive a impressão de que esse filme é uma espécie de contracampo de gertrud, de carl dreyer. Os dois filmes são bem diferentes mas ao mesmo tempo sinto vontade de aproximá-los. Creio que ambos são filmes que falam do amor de uma forma apaixonada. Mas a paixão, apesar de desmesurada, não é cega, ela é precisa. São duas grandes declarações de princípio, de um cineasta na maturidade (dreyer) e outro enfant terrible (eustache), mas de dois artistas que entregam tudo nas mãos do amor. O amor é desmesurado, doentio, mas sublime. O filme de três horas e meia de eustache é um filme francês em que se fala o tempo inteiro, com muitos planos médios, que pouco aponta para si como cinematografia, mas não importa: o essencial é entregar o filme para que esses personagens vivam e amem, e o filme é extremamente honesto em entregar-se a isso. Há uma pobreza que contamina a mãe e a puta e que faz dele um grande filme. Nisso o filme de eustache é muito preciso, muito fiel ao seu sentimento. É aí que está a precisão de eustache. O amor pode ser uma espécie de câncer mas que ilumina e é tudo o que se tem, e o filme se entrega a isso, e isso basta.


Le revelateur
de philippe garrel


A radicalidade de Le revelateur, segundo longa de philippe garrel, nos faz lembrar de um certo cinema brasileiro hoje, e daí vem a sua incrível atualidade, e por isso nos inspira, e nos surpreende. Uma certa juventude, hoje no brasil, pode se identificar imensamente com essa experiência solitária de garrel no final dos anos sessenta. Há um certo esboço de narrativa no filme, que trata da crise de um casal, e a percepção de seu filho, as relações de intimidade e recusa desse casal. Acontece que garrel não procura fazer um cinema narrativo, mas oferece outra possibilidade para que testemunhemos (percebamos/sintamos) a angústia desse relacionamento: através de planos bastante longos, de espécies de sequências independentes, em que mais do que conflito/clímax, etc, temos uma percepção física/espacial/sensorial da necessidade e da dificuldade desse casal estar junto. O filme dessa forma é composto de planos que poderiam ser dispostos em outra ordem, quase independentes. "Quase" porque na verdade há um certo sentido de montagem, explícito no final do filme quando o menino praticamente se liberta dos pais e vive sua própria história. É curioso também percebermos que enquanto durante o filme existem vários planos em que o menino circula entre o casal, no final ele terá uma certa independência, como se todo o filme fosse uma espécie de percurso desse menino em direção a uma certa liberdade de ser, tentando se afastar da força centrípeta dessa relação dos pais, que o consome. Preto e branco, totalmente sem som, le revelateur é um filme absolutamente radical que busca uma reconstrução de um sentido de espaço e plano, dialogando bastante com as artes plásticas. Ao mesmo tempo em que há um enorme rigor plástico na composição do filme, há também uma nítida pobreza de realização. Essa pobreza dará ao filme uma enorme vitalidade, e talvez venha daí a sua impressionante atualidade, sua combinação singular entre rigor e pobreza, combinação improvável e singular. O filme também impressiona por seu uso da luz, com lanternas que criam pontos focais de grande contraste, em situações críticas de iluminação. Há um certo caráter ritualístico na postura dos corpos, na ênfase em repetições, que se tornou uma certa marca do cinema primeiro de garrel: as caminhadas sem fim, a melancolia de personagens que tentam se agarrar uns aos outros porque pouco têm, a aparente falta de finalidade dos planos, que apontam exatamente para um interminável percurso de si (percurso físico/metafísico/aquém-além-no-mundo, percurso ético/estético). O vigor de todos esses elementos faz com que le revelateur, assim como alguns filmes próximos, como a cicatriz interior, o leito da virgem, les hautes solitudes, seja uma prova da maestria de garrel em compor filmes em que a busca por um certo rigor formal e uma radicalidade de expressão nunca abandona a peregrinação de seus personagens marginais, solitários e difusos.


Milagre em Milão
de Vittorio de Sica


imagino que milagre em milão tenha sido um verdadeiro escândalo por ter sido produzido exatamente após ladrões de bicicleta. Enquanto este era um filme sóbrio, de base realista sobre o drama de um simples trabalhador italiano do pós-guerra, milagre em milão prossegue com as preocupações humanistas de zavattini/de sica em torno dos mais humildes italianos do pós-guerra mas o faz com uma estética que dialoga com o fantástico e não com o realismo. Se há portanto uma base comum entre os dois filmes (um apelo humanista), em milagre em milão se aponta para a comédia e para o fantástico como uma certa forma falsamente escapista de dar conta do enorme abismo entre a realidade e o desejo de uma sociedade mais justa. Se ladrões de bicicleta era um filme sobre os meios de produção e sobre o trabalho, milagre em milão é sobre a terra e a propriedade como poder. Sobre a violência como forma de opressão e sobre a heterogeneidade dos menos favorecidos como representativa da falta de união. Docemente amargo, milagre em milão por outro lado não santifica ou vitimiza os menos favorecidos, abordando uma certa cobiça e competição: somos todos humanos. Mas a tirania está ali. De qualquer forma, para além das questões internas dos rumos do neorrealismo italiano, milagre em milão nos surpreende pela abordagem atípica de uma questão social: um certo tom de farsa, uma enorme ousadia. Filme incompreendido, ontem e hoje, que marca que zavattini não é o realista ingênuo que se prega.


O iluminado
de Stanley Kubrick


o iluminado impressiona porque é um filme totalmente feito de cinema: comprova a maestria de Kubrick em compor climas, cenas, personagens sombrios, que oferecem uma espécie de outro lado de um cinema de um american way of life. Um filme de terror composto de silêncios e de pausas. Montagem descontínua, com planos longos combinados por elipses radicais de corte seco, e momentos de planos bem curtos. Travellings assustadores. Terror psicológico, limite tênue entre a fantasia, a imaginação, o delírio, a doença, a paixão e a morte, ou seja, o cinema de Kubrick. Exuberante direção de arte: extraordinária a visão de Kubrick do universo do romance de stephen king visualizando esse hotel e especialmente os seus largos aposentos e corredores. Um filme sobre os corredores. Claustrofóbico mesmo em largos aposentos. Filme irretocável, feito de cinema. Ao mesmo tempo, fico com a impressão de que Kubrick perde o seu tempo e enorme talento com diversões sádicas ao invés de se aprofundar num certo trabalho mais humano e mais honesto. Um certo desperdício do enorme talento de Kubrick para compor um mural brilhantemente composto mas até certo ponto tolo. Cria climas mas o consolida mais como um artesão do que um artista que finca posições diante do mundo.

Comentários

Juliana disse…
Marcelo, estou no último semestre da graduação em cinema, portanto elaborando minha monografia. Durante minhas pesquisas, seu nome apareceu algumas vezes e eu li suas críticas, etc. Você poderia disponibilizar seu e-mail para contato? Gostaria muito de perguntar algumas coisas a você.
O meu e-mail é julianacadastro@gmail.com

Aguardo.
Abs.
Murilo disse…
http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2014_07_01_archive.html

O Triângulo Amoroso de Jean Eustache

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