the tree of life

Foi perfeito ir ao Dragão do Mar numa terça-feira às 14hs ver o tão aguardado A Árvore da Vida, de Terrence Malick. A aura de mito que se instaurou em torno do diretor – é incrível como, com a disponibilidade das novas tecnologias, foi possível ver quase em tempo real pequenos vídeos de celular que mostravam pessoas se acotovelando para entrar na primeira sessão pública do filme em Cannes – pode deslocar a atenção do filme em si para a “persona” do autor, mas, de qualquer modo, toda essa confusão traz pessoas para verem “um filme de cinema”, em que Malick se lambuza com sua possibilidade de “carta branca” no cinema hollywoodiano. E, acima de tudo, mesmo que não se goste, é preciso afirmar que se trata de uma experiência ousada, corajosa, generosa, delicada, humana e, especialmente, honesta e coerente com sua filmografia.

Este prólogo é curioso porque, ao mesmo tempo em que a aura do mito e a grandiloquência se instauram a cada projeto de Malick, é possível ver A Árvore da Vida como um filme menor, até mesmo como um certo aspecto de exercício formal: é curioso como, ao mesmo tempo em que Malick propõe uma espécie de cosmogonia num estranhíssimo trecho de cerca de quinze minutos, há um conjunto de planos, principalmente quando as crianças brincam, em que reina uma atmosfera de leveza e de improviso, em que a câmera abraça um clima sensorial. A Árvore da Vida, ao contrário de, por exemplo, Além da Linha Vermelha, não me parece ser um filme de decupagem, de austeridade formal e de planos longos. Ao invés disso, é uma espécie de poema sinfônico, composto de movimentos que se dobram, repetem-se com variações, estabelecendo relações dinâmicas. Prova disso é a primeira hora do filme, com a quase total ausência de diálogos (as palavras resumem-se praticamente à narração, de ambição metafísica, frequente nos filmes de Malick), quando o filme abandona qualquer vocação narrativa, para entregar-se a uma nuvem de sentimentos, em que o uso frequente da steadicam confere um tom particular de suspensão dos sentidos físicos.

Acontece que, para além da beleza desses gestos, A Árvore da Vida é reiterativo: cada plano parece simplesmente reiterar o anterior quanto a uma certa busca por uma inefável beleza da vida, que aponta para a fragilidade do amor, ou ainda que a violência da natureza humana pode a qualquer momento destruir a busca pelo alcance da graça. Alguns recursos tornam-se abusos: contraplongées com luz do sol formando flares, steadicams com movimentos autônomos aos personagens, grandes angulares gerando estranhamento, música clássica compondo climas musicais, efeitos sonoros de timbre bastante grave, etc.

Após a primeira hora, o filme estabelece sua feição narrativa, como um romance de formação de consciência de um dos filhos de uma família, e sua relação conflitiva com seu pai. Se a narrativa se estabelece de forma mais clara, o filme prossegue com suas estratégias gerais de encenação: a narrativa também se torna reiterativa, formando uma oposição entre a fragilidade da beleza feminina (a graça), representada pela mãe, e a austeridade violenta do pai (a natureza). Apoiando-se em antíteses frágeis, os personagens carecem de maior força: a grande força desse filme de Malick está nas imagens em si. As imagens tornam-se símbolo, “metáforas” de questões por demais explícitas (por exemplo, uma das sequências que mostra meninos soltando bolhas de sabão...). Ao mesmo tempo em que o filme é todo composto por elaboradas elipses e por um fiapo de narrativa, há no fundo pouca sugestão ou ambiguidade: os planos parecem funcionar simplesmente como símbolos do “projeto cinematográfico de Malick”.

Por isso, enquanto assistia a A Árvore da Vida, não pude deixar de pensar no cinema de Bresson. É como se A Árvore da Vida fosse uma espécie de Mouchette, quando ambos procuram mostrar como um jovem descobre que a vida se afasta da graça e descobre sua natureza. Mas Bresson é um materialista: os elementos que ele tem a seu dispor são o corpo e a descrição dos fatos, ou seja, os elementos do mundo. Já Malick prefere compor uma espécie de elegia, um cântico frágil demais para lidar com o mundo: é como se a delicadeza desse amor e dessa graça não coubessem num mundo regido pela natureza. A fragilidade do amor de Malick não pode viver neste mundo, apenas no mundo do cinema.

Colocando de outra forma, é como se o mundo interessasse pouco a Malick. Seu filme é praticamente todo enclausurado nessa família: não existe história ou sociedade, não existe política. Em Bresson, a perda da inocência de Mouchette o tempo todo dialoga com o mundo e com seu corpo. O cinema de Bresson é sempre um cinema do mundo. É só compararmos com Pickpocket, em que ao final o personagem encontra sua graça. Mas, antes, ele precisa passar pelo mundo. A epifania só é possível através de um caminho POR DENTRO do mundo das coisas. É o caminho, o percurso que interessam a Bresson. O corpo, o mundo.

Esse clima de suspensão neste filme de Malick me remete ao que escrevi sobre dois filmes brasileiros recentes: Insolação (aqui) e Do Começo ao Fim (aqui). Se é preciso, apesar de tudo, AMAR, como diz Malick ao final do filme, é preciso, antes de tudo, entregar-se ao mundo, porque amar é humano, é imperfeito. O que me parece faltar a A Árvore da Vida é aquele princípio básico colocado no último filme do Woody Allen “é preciso caminhar pelas ruas”. De qualquer forma, é comovente a busca de Malick por uma beleza que não cabe neste mundo, especialmente no interior da selva de pedra do cinema hollywoodiano, dominado por franquias e fórmulas de produtos preformatados. Se A Árvore da Vida possui lampejos de uma beleza formidável, seu tom reiterativo – mesmo com a busca por uma encenação de improviso, mas sempre um improviso “plasticamente perfeito” (os lampejos de Malick decerto não são os glimpses de Mekas!) – sua lição de moral frágil, sua beleza meio autocomplacente, parecem nos mostrar porque o recluso diretor ambienta vários de seus dramas num outro tempo e lugar: uma deliberada recusa do presente. E amar, esse verbo intransitivo, só pode ser conjugado no presente.

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