Café Lumière

Café Lumière
De Hou Hsiao-Hsien
Estação Botafogo qua 28 21:30
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Café Lumière é completamente diferente do cinema de Hsiao-Hsien, já que, aqui, há o compromisso de emular a estética de Yasujiro Ozu, homenageado explícito do filme.”
Jaime Biaggio, blog do bonequinho do O Globo

Começo falando sobre Café Lumière pegando a frase do crítico Jaime Biaggio, pois se Café Lumière é exatamente isso (uma grande homenagem ao centenário de nascimento do Mestre Yasujiro Ozu) nada poderia ser mais distante dos objetivos de Hsiao-Hsien. Isto porque o filme, em primeiro lugar, acaba sendo uma reflexão profunda sobre o significado de uma homenagem, ou ainda, sobre o que representa fazer um filme “em referência de outro”, termo que expressa uma auto-referencialidade cada vez mais em moda nos meios cinéfilos. Se Ozu é de fato o “homenageado explícito do filme” (como é infeliz o termo “explícito”!...), Café Lumière sobrevive tranquilamente mesmo para o espectador que nunca ouviu falar quem seja Ozu, simplesmente porque se Hsiao-Hsien simplesmente “emulasse uma estética” ele nunca estaria realizando uma homenagem verdadeira a Ozu. Claro, porque o cinema de Ozu nunca foi devoto a “emulações”, bajulações ou adornos estéticos: seu cinema, ao contrário, se reduz ao essencial, ao mesmo tema de sempre: a complexidade e a poesia simples da vida comum de cada dia e as transformações da família e da sociedade japonesas. A sabedoria de HH é exatamente essa: saber que a única homenagem possível a Ozu seria através de um filme que nunca tentasse “emular uma estética” mas que simplesmente buscasse, a partir de referências temáticas e estéticas, dialogar com o cinema de Ozu, trilhando os caminhos possíveis do cinema oriental de hoje e da sociedade e da família japonesas de hoje.

Através desse diálogo, entre o cinema “de estúdio” de Ozu de ontem e o cinema “de arte” de Hsiao-Hsien de hoje, o diretor acabou realizando uma metalinguagem sobre o conflito entre tradição e modernidade, típico do cinema de Ozu. Se antes era a sociedade japonesa pós-segunda guerra na sua reconstrução econômica que flerta com o capitalismo norte-americano, hoje é o Japão de um mundo globalizado pós-guerra fria, entre uma crise mundial de emprego e entre um cinema que cada vez mais comprova que precisa largar seus artifícios formalistas para se dedicar às necessidades de aproximação entre os indivíduos.

Mas, antes disso, Café Lumière é um filme sobre o tempo da vida, sobre a duração das coisas, e sobre uma idéia de rotina. É um filme que tenta conduzir uma idéia de cinema que abandone meramente um sentido funcional (leia-se narrativo, causal, impositivo) para buscar um cinema que de forma orgânica busque uma possibilidade de “viver com os personagens”, e não “viver dos personagens”. Ou melhor, mais que “ser personagens”, eles simplesmente são. Com isso, Hsiao-Hsien busca um cinema puro, um cinema que não precisa “ter que dizer alguma coisa” mas que simplesmente diz.

Um rapaz tem um livraria e nas horas vagas grava sons de trens, simplesmente porque tem uma curiosidade. Uma menina, artista gráfica, pesquisa o que sobrou de antigos cafés em mapas antigos da cidade. Ela conta aos pais que ficou grávida, e quer ser mãe solteira (se isso no Brasil de hoje já é difícil, imagine no Japão, em que a “família” ganha um outro sentido...). Um pai bebe saquê, vê beisebol na TV e fala “hmmm”. Uma mãe cuida da casa e faz as comidas mais deliciosas para sua filha.

Cada um faz o que acha conveniente para si, mas com um profundo respeito pelo outro. Cada um no seu lugar, mas ao mesmo tempo, cada um em sintonia com o outro. Nisso, o trem passa, as estações do ano passam, as pessoas envelhecem, as coisas mudam um pouco, ainda que lentamente.

Esse é o cinema de Hsiao-Hsien em Café Lumière. Um filme atípico do diretor, que em geral busca um cinema de linguagem expressivo, com uma atmosfera asfixiante e soturna (Milenium Mambo e Flores de Shangai, pelo menos assim o eram). Mas nesse filme não: qualquer possibilidade de esteticismo sucumbe a um desejo de um abraço carinhoso e de um resgate ao verdadeiro cinema de Ozu, sem desprezar o papel do tempo e a inutilidade de simplesmente “emular uma estética”. Um filme em que a mise-en-scene existe (é um filme de construção, embora sutil) mas não para que “dissimule” uma realidade, e sim para que seja. E mais: um trabalho sobre a possibilidade de viver, com respeito e dignidade. O “Lumière” do título acaba despertando a possibilidade de mais uma referência: a de que o cinema, para sobreviver, precise reaprender as lições do seu berço uterino.

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