DEMOCRACIA EM VERTIGEM
EM TEMPOS DE VERTIGEM
Lamento profundamente discordar da grande onda de encantamento e comoção em torno de DEMOCRACIA EM VERTIGEM, de Petra Costa, mas gostaria de propor uma reflexão sobre porque esse filme me pareceu tão insatisfatório. Gostaria de começar lançando uma pergunta: a quem esse filme se destina? Petra tem como objetivo promover uma análise panorâmica sobre as transformações políticas de nosso país. Como um país que guiava em direção à democracia, enfrentou, em tão pouco tempo, uma descontinuidade abrupta, a ponto de a diretora considerar que a democracia foi na verdade “um sonho efêmero”? A base dessa pergunta já revela os pressupostos políticos da realizadora. A questão não é propriamente “de que lado ela (ou o filme) está” mas quais os métodos utilizados pelo filme para dar forma ao seu discurso. E o que o desenvolvimento desse discurso provoca como reflexão sobre o curso de nosso país. Pois bem: a partir dessa ambição panorâmica a nível macro, Petra adiciona um elemento típico de sua filmografia – uma análise pessoal, como uma espécie de documentário em primeira pessoa. Comtemplar a presença da morte, do fracasso ou da culpa já estava presente no seu anterior ELENA. O desafio de DEMOCRACIA é então articular o drama familiar individual em primeira pessoa com a observação macro dos rumos políticos do país.
Lamento profundamente discordar da grande onda de encantamento e comoção em torno de DEMOCRACIA EM VERTIGEM, de Petra Costa, mas gostaria de propor uma reflexão sobre porque esse filme me pareceu tão insatisfatório. Gostaria de começar lançando uma pergunta: a quem esse filme se destina? Petra tem como objetivo promover uma análise panorâmica sobre as transformações políticas de nosso país. Como um país que guiava em direção à democracia, enfrentou, em tão pouco tempo, uma descontinuidade abrupta, a ponto de a diretora considerar que a democracia foi na verdade “um sonho efêmero”? A base dessa pergunta já revela os pressupostos políticos da realizadora. A questão não é propriamente “de que lado ela (ou o filme) está” mas quais os métodos utilizados pelo filme para dar forma ao seu discurso. E o que o desenvolvimento desse discurso provoca como reflexão sobre o curso de nosso país. Pois bem: a partir dessa ambição panorâmica a nível macro, Petra adiciona um elemento típico de sua filmografia – uma análise pessoal, como uma espécie de documentário em primeira pessoa. Comtemplar a presença da morte, do fracasso ou da culpa já estava presente no seu anterior ELENA. O desafio de DEMOCRACIA é então articular o drama familiar individual em primeira pessoa com a observação macro dos rumos políticos do país.
Na dimensão
individual, Petra lança alguns elementos. O principal deles é a sua própria
voz-over, que se afasta das imponentes “vozes-de-deus” em tom “branco” e
preenche a camada sonora com um perfil humano comum. O segundo é a reflexão
sobre o choque de perspectivas entre seus pais, antigos militantes de esquerda
(sua mãe chegou a ser presa no mesmo local de Dilma), e a tradição de seus
avós, ricos empresários da Andrade Gutierrez, uma das empresas denunciadas na
Lava Jato. Petra então é herdeira direta desses dois grupos opostos que
fracassaram – os militantes de esquerda e a elite empresarial brasileira.
No entanto, os
impasses dessa filiação não são aprofundados de fato pela realizadora. DEMOCRACIA
EM VERTIGEM não é uma reflexão sobre a posição de classe da realizadora ou
sobre o fracasso de uma geração, aos moldes de filmes que trabalham as fissuras
da linguagem documental, aprofundando e complexificando suas cicatrizes, como
OS DIAS COM ELE, de Maria Clara Escobar, um duro acerto de contas da própria
realizadora com seu pai, ou mesmo SANTIAGO e NO INTENSO AGORA, de João Moreira
Salles.
A inclusão do
elemento familiar ou íntimo acaba servindo na verdade como mero entremeio para
a principal função do filme: a construção de uma narrativa sobre as transformações
do regime político brasileiro, ou ainda, a perda de legitimação do Partido dos Trabalhadores
e a ruptura da tradição democrática. A forma como Petra constrói essa narrativa
macropolítica articula as imagens de arquivo com a própria narração de Petra,
que, por boa parte do filme, meramente ilustra e costura o que as imagens em si
não conseguem propor. Assim, a voz-over, mais do que investir no documentário
em primeira pessoa, funciona como alicerce para a corroboração da construção de
uma narrativa (um discurso) sobre o país. É ela quem no fundo apresenta o que é
o filme.
A forma didática
e linear, com relações de causa-e-efeito forçadas, sem grandes sutilezas, desvela
uma narrativa sem grandes novidades em relação ao discurso hegemônico da
esquerda. São raros os momentos em que o filme procura inserir camadas de cinza
ou questionamentos sobre algumas contradições e paradoxos internos do PT. São
raros os momentos em que o filme reflete sobre a própria produção dessas
imagens, sobre suas lacunas ou fissuras. Um deles, notável exceção, ocorre
durante a posse de Dilma, quando Lula, Dilma e Marisa descem a rampa do Planalto,
com a companhia de Temer. Nesse momento, o filme promove uma leitura dessa
imagem como um certo prenúncio do impeachment, visto o nítido isolamento de
Temer em relação aos outros três corpos. Em outro deles, Dilma confidencia a
Lula, no momento imediatamente após a confirmação do resultado da sua primeira
eleição como presidente: “você que inventou essa”. Nesses momentos, parece que
o filme escapa de sua vocação apriorística e se abre para as dobras e os
paradoxos das imagens. São momentos em que o filme se liberta da necessidade de
corroborar um discurso e mergulha em simplesmente olhar para as imagens e
tentar entender o que elas dizem, suas camadas e hiatos. Sinto falta no filme de
Petra que ela realmente olhe para as imagens, antes de manuseá-las como função no
interior da narrativa. Ou seja, as imagens parecem que estão aprisionadas
diante do discurso prévio da realizadora. Petra lida com essas imagens sem deixá-las
respirar ou falar por si mesmas, mas as mostra apenas se servem como testemunha
ou elemento de acusação, ou ainda como mera peça de uma grande tapeçaria, como
se realizasse uma narrativa típica do cinema clássico, mas com imagens que não
lhe pertencem. O que sobrevive do filme de Petra não é sua narrativa de costura
forçada, em grande máquina industrial, simulando um look semicaseiro, mas os
pequenos momentos em que as imagens, sorrateiras e traiçoeiras, se libertam do
arremedo totalizante da realizadora e se deixam revelar em suas bordas e
lacunas.
Mas aqui volto a
pergunta inicial: a quem o filme se destina? Pela exposição minuciosa dos
grandes temas já exaustivamente apresentados pela grande imprensa, como um
grande resumo jornalístico, sem apresentar grandes novidades ou reflexões mais
aprofundadas, me parece que o filme se destina primordialmente para um público
que não tem muita intimidade com o desenrolar dos fatos, especialmente para o
público estrangeiro. Ainda mais pelo fato de o filme ser produzido e
distribuído mundialmente pela Netflix, a suspeita se reforça.
Alguns poderiam estranhar
o fato de uma empresa internacional – que se movimenta para aprovar a regulação
do VOD no país, ainda em suspenso, favoravelmente a seus interesses comerciais,
inclusive articulando sua inclusão no Conselho Superior de Cinema – produzir um
filme com um discurso claramente oposto ao governo no poder. Mas DEMOCRACIA EM
VERTIGEM é o outro lado de O MECANISMO – série de José Padilha que causou
polêmica ao tratar, por meio da ficção, os acontecimentos da Lava Jato de forma
um tanto caricata e irresponsável, como um mero thriller policial. É o avesso
que confirma a regra, já que, no fundo, o que a empresa busca, para além de sua
inclinação ideológica, é a realização de produtos que gerem dinheiro. E o valor,
no mundo do capitalismo cognitivo, está diretamente relacionado com o quanto de
buzz o filme consegue movimentar nas mídias, nas redes sociais, de uma classe
média pronta para consumir esses produtos. Ou seja, a ideologia do capital é o
próprio capital.
Pois se a
democracia está em vertigem, em crise ou em risco, DEMOCRACIA EM VERTIGEM nunca
se põe verdadeiramente em risco, nunca provoca de fato o espectador para as
contradições de seu momento histórico ou para o papel e a função das imagens.
Meramente ilustrativo sobre um discurso firmemente sustentado a priori,
descrito pela narração em over, DEMOCRACIA arrola um conjunto de tautologias,
repetindo para o público de esquerda os mantras já fartamente conhecidos por
ele.
Concluo então
pensando como pode ser o cinema político. No mundo de grandes dualismos em que
vivemos, a política no cinema não deve ser dissociada da questão da liberdade.
O fracasso de DEMOCRACIA EM VERTIGEM é que o projeto tautológico da realizadora
raramente estimula que o espectador veja o mundo com seus próprios olhos.
Guiando-o pelas mãos a partir de uma identificação com a própria posição da
realizadora, o público (de esquerda) de DEMOCRACIA EM VERTIGEM passeia pela
narrativa confortavelmente, como se estivesse descorporificado, com se flanasse
pelas belas imagens de Brasília a bordo de um dos drones que sobrevoam a
paisagem. Há aqueles que criticam a posição de Petra analisando as contradições
de seu “lugar de fala”, que exacerba sua leitura classista dos acontecimentos –
ou seja, a diretora, mesmo filha de militantes, permanece seguramente ancorada
no seu lugar de privilégio. Mas nem recorro a esse ponto. Para além da falta de
coerência entre a articulação entre o íntimo e o coletivo, destinada aos
brasileiros e estrangeiros da “esquerda do Netflix”, o grande problema de
DEMOCRACIA está na superficialidade de sua visão de país. Problema que também
perpassa, ou atravessa, um elemento crucial, tipicamente cinematográfico: sua
falta de ousadia, sua incapacidade de sonhar, sua atrofia em imaginar aquilo
que as imagens e os discursos prontos não respondem de sopetão. No fundo, a
tautologia de DEMOCRACIA EM VERTIGEM, ao construir uma narrativa fechada dos vilões
que surrupiaram o poder, reflete a falta de um projeto político-estético para o
cinema de esquerda do país de hoje – ou ainda, os impasses de certo cinema
militante hoje no país.
Por isso, o que me
espanta não é propriamente o filme realizado por Petra mas especialmente a
recepção – rápida e instantânea – que o filme atingiu num certo público – em especial
cineastas e artistas de esquerda. Uma adesão instantânea que bloqueia os paradoxos
do discurso apresentado pelo filme. Uma reação que me parece refletir um certo “desespero”,
como se esse filme fosse uma âncora, bússola ou mapa, para mostrar à sociedade
que é preciso acreditar nessa narrativa para que possamos sobreviver à loucura
ou à tormenta. Mais interessante que o filme tem sido acompanhar a recepção de
DEMOCRACIA EM VERTIGEM. A comoção em torno do filme acaba evidenciando a profunda
falta de perspectivas e a crise de pensamento da hegemonia da esquerda
brasileira.
Se quisermos virar
o jogo, precisamos de narrativas melhores.
Comentários
perpetuando assim a boa consciência da esquerda que sempre deixou-lo nas margens onde ele nasceu e se creio. Não tem também nenhuma palavra sobre o papel dos bancos nessa tragédia, o que parece extraordinária.
O que tenho lido não são críticas do filme, mas críticas políticas sobre a posição da diretora (sou militante, parte da bolha, logo os prós e contras estão reduzidos a posicionamentos políticos, o que é triste). Coincidindo com nossa visão da conjuntura, crítica positiva. Divergindo, crítica negativa. Não pode ser assim.
Não que o posicionamento político não seja uma camada a se considerar (correto?), mas reduzir o "bom" ou "ruim" por esse critério é muito reducionista, totalmente injusto e precário. Assim como é reducionista desdenhar do filme por ser produzido por uma mulher branca, de classe média alta. Acho caricato.
Sobre "os impasses de certo cinema militante hoje no país", gostaria muito de ter acesso a esse debate. Sei que Coutinho e Salles são de uma escola, pra mim, excessivamente cética e hostil ao cinema militante. Acho que eles trazem alertas importantes, mas sinto sempre que exageram na pancada.
Se tiver textos, vídeos com debates sobre o tema, qualquer coisa do gênero, ficaria grato.
Parabéns pela crítica.
Abraço!
Verdade que está posta a escolha política de Petra, mas para mim foi trazida mais com cuidado do que com intenção de manipulação.
Para mim, não há como comparar Mecanismo com Democracia em vertigem, pois o primeiro foi uma obra de ficção que deturpou fatos, o segundo traz os acontecimentos, registrados com uma narrativa que nos possibilita construir a nossa própria avaliação.