MÃE SÓ HÁ UMA
MÃE SÓ HÁ UMA
de Anna Muylaert
Filmado
antes mesmo da grande repercussão de público e crítica de QUE HORAS ELA VOLTA?,
em MÃE SÓ HÁ UMA, Anna Muylaert realiza uma obra que em muitas medidas ressoa
como um projeto de continuidade com o filme anterior, incentivado até mesmo por
essa realização encavalada, algo muito raro no cinema brasileiro, em que, em
geral, um diretor espera cinco anos para realizar um novo filme. Dois filmes
que quase podem ser vistos como um só, em como partem de um projeto para falar
do Brasil por meio dos instrumentos de um "filme médio", e que quase
se complementam. A artesã Anna vai dando continuidade à sua filmografia, vai
empurrando-a para frente, e isso é raro dentro do cinema brasileiro.
Os
dois filmes são uma radiografia íntima das transformações do Brasil
contemporâneo, tendo como ponto de partida as relações entre a família e as
noções de identidade (como de gênero), mas focado nas questões de classe. São
filmes pautados por relações humanas, e como um certo equilíbrio se rompe pela
chegada de um elemento externo, que "tira de debaixo do tapete" as
contradições de um certo modo de ser da classe média alta brasileira. Em QUE
HORAS ELA VOLTA? o filme se propõe a apresentar um panorama mais complexo das
relações, pois claramente extrapolava aquela família em si, abordando não
apenas as diferenças entre gerações, mas entre classes sociais, relações de
trabalho e origens geográficas. MÃE SÓ HÁ UMA permanece observando os conflitos
da família, mas evita a questão do trabalho e das diferenças geográficas, mas
foca nas classes sociais. O panorama social parece menos óbvio, pois o filme se
concentra mais em um único personagem (Pierre/Felipe, seu protagonista), em
invés de propor um mosaico, como o filme anterior. Essa opção facilita as opções
de roteiro, e, claro intensifica a identificação do espectador com o
protagonista, arma central nas estratégias discursivas de Muylaert para um
projeto de cinema que busque "uma certa comunicação com o público".
A
partir dessas premissas, meus incômodos com MÃE SÓ HÁ UMA são parecidos com os
que senti no filme anterior, e se resumem nas opções que a diretora encontrou
para dar voz a esses temas urgentes que pulsam em nossa sociedade, cada vez
mais. São as opções em termos do desenvolvimento do roteiro e na caracterização
dos personagens, e, especialmente, nas opções de mise-en-scene, em que
predomina um certo maniqueísmo, uma abordagem superficial das contradições e
dos conflitos dos personagens, tornando-os mais joguetes de representações
sociais do que tendo vida autônoma, tornando o filme mecanicista e esquemático.
Dessa
forma, o filme me parece que carece de originalidade ou de maior consistência seja
para ir além do drama pessoal daquela família (para tocar em questões relativas
à nossa sociedade) ou mesmo para alcançar a tragédia, a dor interna daqueles
personagens. Penso, por exemplo, nas estratégias que Caetano Gotardo utilizou
em O QUE SE MOVE, em que uma das histórias (a terceira) inclusive dialoga
diretamente com o roteiro de Muylaert. Caetano opta por um filme de diálogos e
situações, mas sua sobriedade, a busca de evitar a espetacularização do
conflito, a observação extremamente respeitosa dos corpos, gestos e olhares
fazem desse filme um retrato humano extremamente profundo na observação da perda
e da dor. O filme de Muylaert muitas vezes resolve as cenas com atropelo,
mostrando uma artesã com maior talento para roteirista do que para diretora,
caindo no caricato. Exemplos estão na caracterização dos personagens dos pais
biológicos da irmã de Pierre, ou, especialmente, nos pais biológicos de Pierre.
O que me incomoda em MÃE SÓ HÁ UMA é uma mise en scene no trabalho dos atores
que busca um suposto espontaneísmo (na verdade, não só nos atores mas na arte,
na luz, e especialmente no uso da câmera na mão), mas que no fundo se revela um
artifício extremamente posado e forçado, ou seja, no fundo um
"espontaneísmo forçado", especialmente nas cenas em que as duas
gerações "conflitam", isto é, pais e filhos. A representação de todos
os personagens do mundo dos adultos me parece muito mais forçada e caricata que
a do mundo dos jovens, talvez porque a diretora claramente esteja muito mais do
lado deles do que daqueles. Existe, então, uma certa ingenuidade nas
estratégias de representação desse universo íntimo: os arroubos de violência do
pai, o excesso de carinho da mãe, etc., e como a mise en scene encontrou formas
de expressar essas intenções nas ações, nos gestos e especialmente no corpo e
na voz desses personagens, sem que eles fossem meramente representações de
ideias abstratas do roteiro mas ganhassem carne e vida.
Os
momentos que MÃE SÓ HÁ UMA ganha vida - eles existem, e mais que em seu filme
anterior - são exatamente naqueles em que a mise en scene abandona por alguns
momentos sua função dentro de um roteiro e se deixa perder na intimidade dos
seus personagens, ou ainda, em momentos que a dramaturgia é expressa por meio
da sugestão, da sutileza e da obserevação de pequenos gestos e detalhes do
cotidiano. Destaco em especial duas sequências: a primeira, a filmagem de um
exercício na escola, em que, em duplas, os alunos precisam olhar nos olhos do
outro e abraçá-los; o segundo, no emblemático plano final do filme (spoilers
rs) quando os corpos dos dois irmãos se tocam de forma sutil (algo que pelo
menos para mim, me remete às estratégias da Coppola em Encontros e
Desencontros).
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