Zangiku monogatari
Conto dos Crisântemos Tardios
de Kenji Mizoguchi
de Kenji Mizoguchi
Primeiro filme de consagração da maturidade de Mizoguchi,
realizado em 1939, curiosamente o mesmo ano de A regra do jogo. Dois filmes bem
diferentes; dois filmes bem semelhantes. Dois filmes sobre o processo de
representação: a vida é o maior dos palcos do teatro. Dois filmes que utilizam
de estratégias de encenação mais realistas (especialmente a profundidade de
campo) justamente para problematizar a construção do realismo na vida. Mas o
tom farsesco, burlesco de Renoir se afasta do olhar rigoroso, do cinema ético
de Mizoguchi. Se CRISÂNTEMOS TARDIOS é sem dúvida um filme sobre as tensões
entre vida e representação, ou ainda, sobre os limites sombrios entre criação e
vida, outra faceta do filme é sem dúvida entre seguir ou trair a tradição. E
Mizoguchi, eterno japonês, não consegue ter uma relação de aversão à tradição:
se de um lado seu filme transpira uma imensa insatisfação com o cheiro
embolororado dos rituais anacrônicos do passado, Mizoguchi “quer mudar para
continuar o mesmo”. Me parece que Mizoguchi vê essa velha trupe de teatro como
fariseus, e que só se deve desmascarar a tradição quando, embolorada, ela não
deixa transparecer a essência dos eternos valores da vocação do artista e da
sua obra. Se Mizoguchi não consegue romper com a tradição – pelo menos com os
valores de uma tradição do teatro nô e do kabuki orientais – ele precisa romper
com a superfície de bolor, com essa casca, para fazer sua arte renascer. E
assim Mizoguchi “inaugura” o cinema moderno no Japão do entreguerras. Os longos
planossequências de CRISÂNTEMOS TARDIOS mostram penumbras, áreas de sombras
pelas quais esse personagem pode caminhar. Ele perambula por um palco (palco
entre palcos), do palco do teatro para o palco dos estúdios em que esse próprio
filme é filmado: esse personagem que não parece ser dono da sua própria vida,
que rompe com o que se espera dele para, no final, “cumprir o seu destino” e
fazer exatamente o que se espera dele. Uma marionete que perambula como um
sonâmbulo pelos palcos montados por Mizoguchi, em enormes travellings e em
grandes angulares extremamente atípicas para a época. Quando perambula nesse
palco, o cinema de Mizoguchi se aproxima do teatro, e ao mesmo tempo se afasta
dele (teatro, vida, cinema, é difícil dizer...). Ou ainda, de palco em palco,
não sabemos onde ele começa ou onde termina – essa é a vocação “moderna” de
CRISÂNTEMOS TARDIOS. Ou, poderíamos dizer de outra forma: a modernidade do
filme está quando perguntamos ao final: quem é de fato esse personagem? Até que
ponto ele é livre? Até que ponto ele pôde viver sua própria vida, ou viveu a
vida de um personagem de si mesmo? Muito mais poderia (deveria) ser dito sobre
esse filme, como, por exemplo, sobre o papel da personagem feminina – a
verdadeira protagonista do filme. Nos seus filmes áureos dos anos cinquenta,
Mizoguchi vai retomar, de várias perspectivas, esses olhares: em CONTOS DA LUA
VAGA, em INTENDENTE SANSHO, em A VIDA DE OHARU, em mais alguns outros. O gesto
nobre de Otoku. O gesto nobre de Mizoguchi (e Yoda). Quando, após a
apresentação que consagra a “ressurreição” de Kikunosuke, Otoku se retira do “backstage”
e sai da casa de espetáculos, caminha lentamente até cair agachada junto a uma
árvore. São nesses momentos é que fica mais que claro o cinema ético de
Mizoguchi. Em optar, nesse momento, em acompanhar a consciência dessa
personagem, do seu fim. (São os dois planos – ver aqui a partir de 1h44min).
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