Confesso que, entre todos os filmes que exibimos na mostra Cinema de Garagem, há um deles pelo qual tenho especial carinho. (na verdade, há outro, do qual falarei na semana que vem, quando o vir em 35mm). É um daqueles caprichos dos curadores: há filmes que programamos apenas pelo prazer de poder vê-los novamente, para ver se eles de fato confirmam o que achávamos deles, na primeira vez que os vimos, anos e anos atrás. É um curta esquecido, de um realizador esquecido: Brasiliapé, de R. C. Ballerini, a única obra de Brasília exibida em toda a mostra. Nesses tempos em que a produção brasiliense ganha alguma visibilidade nos circuitos contemporâneos, pela forma franca como encena seus espaços como um gesto político, me parece que rever Brasiliapé ganha um sentido ainda mais especial. Me parece que esse curta de Ballerini de 2003 radicaliza esses supostos elogios sobre alguns filmes da produção local descobertos agora. O curta de Ballerini é um curta político que mostra um outro lado do projeto paisagístico de Brasília, que afasta a convivência humana, por compor grandes espaços em que as pessoas não se encontram, em que é quase impossível circular a pé. Sim, mas o que encanta é como Ballerini encena esse pressuposto, ou ainda, suas opções éticas, estéticas e políticas - reforçando três termos de que falei muito nesses últimos dias na mostra. Seu filme é pura precariedade e rigor. Começa nas cartelas, que descrevem a equipe e a própria dificuldade em fazer com que esse filme fosse feito - uma ponta de filme aqui, uma diária de câmera aqui, um filme que vai se montando na própria câmera de montagem (La valée close, de Rousseau) - com uma ingenuidade quase juvenil, uma forma de poesia que irrompe num filme duro, sobre o esvaziamento do mundo. As pontas dos planos veladas, apontando que o filme é sempre um processo construído, em processo de ser feito, de precariedade evidente, mas sempre de grande rigor. Mas, voltando, como Ballerini encena seu pressuposto? Fazendo uma radiografia do vazio de um projeto (político, humano) a partir de um olhar para esses espaços físicos: as ruas, os carros acelerados, uma passagem subterrânea de pedestre abandonada (lindo plano...), etc. Um olhar para esses espaços: a paisagem como personagem pura de seu filme político. Um olhar para o mundo. Aos poucos, vamos percebendo, no entanto, outros tipos de construção: atores que perambulam pela cidade, desenhando trajetórias que se opõem à dos carros. O olhar documental para os espaços se funde com uma pseudo-narrativa sobre esses corpos que nunca se encontram. Corpos que existem mais como eixo performático, como presença, do que como motivação dramática. É assim que Ballerini articula o documentário, o ficcional e o performático. Corpo, mundo e espírito. Política, ética e estética. Nessa revisão, que me deixou emocionado, redescubro um filme que, hoje, quase 10 anos depois, me parece mais atual do que na época que foi feito, revelando um olhar sobre Brasília muito mais inventivo e pulsante do que alguns dos filmes locais que vêm conseguindo rápida visibilidade.

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