Mostra Cearense Contemporâneo (2) - curtas I
Mostra Cearense Contemporâneo – dia 2 (domingo)
Dois dos curtas da sessão de domingo da Mostra Cearense Contemporâneo dialogaram com valores locais da região do Cariri. Corpos Sagrados, de Mariana Porto, aborda uma antiga tradição da região de Barbalha, em que uma árvore é cortada e seu pesado tronco é carregado pela cidade. O cansaço e o suor dos corpos se misturam ao prazer de participar do rito e às brincadeiras que surgem do contato entre a multidão. Mariana Porto utiliza um conjunto de estratégias visuais mas em geral seu curta prima pela opção em mostrar a tradição sendo pouco didático, investindo mais no caminho dos corpos. Depoimentos de pessoas locais se confundem a planos de câmera lenta, oscilando a cor e o P&B, dando ao curta um olhar fragmentado mas não raras vezes irregular.
A Curva, de Salomão Santana, é filmado na região de Juazeiro. Ou melhor, é uma reavaliação de um material gravado em VHS nos anos oitenta, com a primeira câmera VHS que chegou à região, na inauguração de uma revista local. Salomão, portanto, relocaliza esse material de arquivo, deslocando o olhar do espectador para um material que a princípio teria um interesse bastante restrito, como uma filmagem amadora, análoga aos registros de casamentos e batizados. A Curva, dessa forma, se torna essencialmente uma radical operação de resignificação de um olhar. Salomão não filmou um único plano do filme: a magia de seu filme é a operação de transposição de um material de um contexto específico para outro. Assim as condições de recepção influenciam diretamente na apreensão dessas imagens. Através dessa simples operação de deslocamento, Salomão incide sobre elementos básicos do processo de construção de imagens, quando um documentarista se confronta com um rosto. A frontalidade da câmera na abordagem e a luz dura que incide sobre as pessoas acabam por diretamente influenciar a relação das pessoas com a câmera. O registro nunca é imparcial: existe um certo incômodo das pessoas por serem filmadas, e ao mesmo tempo um prazer em serem registradas. Esse jogo entre a invasão de uma intimidade e a sedução do olhar da câmera promove inúmeras camadas que se desdobram no rosto das pessoas, em como elas evitam ou se aproximam do olhar da lente. De outro lado, existe nós, o público espectador, que tenta se relacionar com essas imagens com um misto de encanto e de distanciamento, já que esse universo que fala do outro nos é a princípio estranho: as roupas e os penteados das pessoas, a forma de filmagem, etc. Mas por outro lado somos nós. Dessa tensão entre o olhar da câmera, o olhar das pessoas, e o olhar oculto do público, o misterioso A Curva – já pelo seu título – é um enigma: por trás de uma simples operação de deslocamento de um material “amador”, Salomão promove uma profunda reflexão sobre a natureza da produção e da recepção de imagens.
Outros dois curtas inserem o típico perfil da nova cena que se estabelece em Fortaleza. Vista Mar, projeto de conclusão da primeira turma da Escola do Audiovisual em Fortaleza, mostra um olhar inventivo para o documentário que foge das estratégias tradicionais de depoimentos ou temas históricos. Para falar do abismo que envolve a cidade de Fortaleza, os diretores de Vista Mar escolheram abordar os apartamentos da Avenida Beira-Mar, o metro quadrado mais caro de toda a cidade. No entanto, diferentemente da estratégia de Um Lugar ao Sol, que busca ridicularizar os moradores, mostrando-os como fúteis ou levianos, Vista Mar mergulha no vazio: grande parte desses apartamentos está simplesmente à venda, à procura de um morador. O vazio desse amplo espaço avança portanto do meramente geográfico (o filme rastreia os corredores, os halls de entrada, as inúmeras suítes) para um contexto que vai além do físico: o absurdo dessa própria situação de desigualdade. Ou seja, a ironia passa a coabitar a própria estrutura do curta, e não simplesmente da relação entre os depoimentos e a montagem. Ainda, Vista Mar é provocativo porque se utiliza da ironia: o curta se abre com uma paródia de um anúncio publicitário de venda desses apartamentos, caricaturizando uma suposta simulação das estratégias visuais e sonoras dessas peças audiovisuais. Em complemento a isso, há uma surpreendente estratégia de abordagem: para ter acesso aos apartamentos, a equipe do curta se fez passar por uma equipe de filmagem contratada por um grande empresário de São Paulo, iludindo os corretores a apresentarem os apartamentos como um potencial de venda. A forma curiosa como o curta se desdobra entre a ironia, entre a provocação da ética da forma de abordagem e o exame crítico da vida desigual em Fortaleza tornam Vista Mar um documentário surpreendente, atípico, que exemplifica o desejo de contestação dessa nova geração do audiovisual de Fortaleza.
A ironia é uma das chaves de Longa Vida ao Cinema Cearense, curta-manifesto realizado pelos Irmãos Pretti, dois cariocas que chegaram em Fortaleza e começaram a interagir com a cena audiovisual da cidade, através de cursos sobre cinema contemporâneo e estimulando a produção com “orçamento zero”. Longa Vida é ao mesmo tempo uma ode e um manifesto. De um lado, ele parece criticar um contexto oficialesco para a realização audiovisual no Brasil, baseada em editais de seleção de projetos: um diretor com uma máscara de Mickey Mouse (influência do curta Espuma e Osso) tem seu projeto recusado por uma comissão. Por outro, é um “brinde à resistência”, quando, na segunda parte, as estratégias de ironia se desfazem, quando as máscaras dos personagens são deixadas na rua, e passamos – sem “música-clima” e sem uma imagem “mega colorida” – a simplesmente acompanhar o percurso dos realizadores (agora não mais personagens) pelas ruas do Centro de Fortaleza no amanhecer do dia. Essa insistência no percurso e nos planos longos, calcando a realização muito mais num processo ininterrupto do que num ponto de chagada, que tanto marca o cinema dos Irmãos Pretti, é uma das chaves de entrada no posterior Estrada Para Ythaca, cuja inesperada repercussão marcou o amadurecimento do coletivo Alumbramento.
Ao mesmo tempo, um curta da sessão comprova que juventude não é questão de idade, e sim de espírito. La Muerte é um exemplo da vitalidade inventiva do trabalho do veterano Firmino Holanda, que, mesmo recluso, permanece realizando em Fortaleza. Firmino possui uma posição tão curiosa nesse cenário que teve curtas incluídos em todas as sessões da Mostra Cariri: além de La Muerte no Cearense Contemporâneo, Capistrano no Quilo foi exibido no Panorama Cearense, e Na Pele, no de Animação. La Muerte é um ensaio visual que reflete não tanto a morte, mas propriamente sua representação através de imagens e de ritmos. Evocando seja os primeiros ensaios fotográficos de Muybridge seja o cinema de montagem de Eisenstein, Firmino propõe uma relação ambígua entre a fotografia e o cinema, ou ainda, entre o estático e o movimento. A notável articulação entre a imagem e o som e o ritmo particular que pulsa da montagem mostram o refinamento da juventude de Firmino Holanda, ainda que ela interaja pouco com o atual caldo cultural de renovação do audiovisual da cidade.
Dois dos curtas da sessão de domingo da Mostra Cearense Contemporâneo dialogaram com valores locais da região do Cariri. Corpos Sagrados, de Mariana Porto, aborda uma antiga tradição da região de Barbalha, em que uma árvore é cortada e seu pesado tronco é carregado pela cidade. O cansaço e o suor dos corpos se misturam ao prazer de participar do rito e às brincadeiras que surgem do contato entre a multidão. Mariana Porto utiliza um conjunto de estratégias visuais mas em geral seu curta prima pela opção em mostrar a tradição sendo pouco didático, investindo mais no caminho dos corpos. Depoimentos de pessoas locais se confundem a planos de câmera lenta, oscilando a cor e o P&B, dando ao curta um olhar fragmentado mas não raras vezes irregular.
A Curva, de Salomão Santana, é filmado na região de Juazeiro. Ou melhor, é uma reavaliação de um material gravado em VHS nos anos oitenta, com a primeira câmera VHS que chegou à região, na inauguração de uma revista local. Salomão, portanto, relocaliza esse material de arquivo, deslocando o olhar do espectador para um material que a princípio teria um interesse bastante restrito, como uma filmagem amadora, análoga aos registros de casamentos e batizados. A Curva, dessa forma, se torna essencialmente uma radical operação de resignificação de um olhar. Salomão não filmou um único plano do filme: a magia de seu filme é a operação de transposição de um material de um contexto específico para outro. Assim as condições de recepção influenciam diretamente na apreensão dessas imagens. Através dessa simples operação de deslocamento, Salomão incide sobre elementos básicos do processo de construção de imagens, quando um documentarista se confronta com um rosto. A frontalidade da câmera na abordagem e a luz dura que incide sobre as pessoas acabam por diretamente influenciar a relação das pessoas com a câmera. O registro nunca é imparcial: existe um certo incômodo das pessoas por serem filmadas, e ao mesmo tempo um prazer em serem registradas. Esse jogo entre a invasão de uma intimidade e a sedução do olhar da câmera promove inúmeras camadas que se desdobram no rosto das pessoas, em como elas evitam ou se aproximam do olhar da lente. De outro lado, existe nós, o público espectador, que tenta se relacionar com essas imagens com um misto de encanto e de distanciamento, já que esse universo que fala do outro nos é a princípio estranho: as roupas e os penteados das pessoas, a forma de filmagem, etc. Mas por outro lado somos nós. Dessa tensão entre o olhar da câmera, o olhar das pessoas, e o olhar oculto do público, o misterioso A Curva – já pelo seu título – é um enigma: por trás de uma simples operação de deslocamento de um material “amador”, Salomão promove uma profunda reflexão sobre a natureza da produção e da recepção de imagens.
Outros dois curtas inserem o típico perfil da nova cena que se estabelece em Fortaleza. Vista Mar, projeto de conclusão da primeira turma da Escola do Audiovisual em Fortaleza, mostra um olhar inventivo para o documentário que foge das estratégias tradicionais de depoimentos ou temas históricos. Para falar do abismo que envolve a cidade de Fortaleza, os diretores de Vista Mar escolheram abordar os apartamentos da Avenida Beira-Mar, o metro quadrado mais caro de toda a cidade. No entanto, diferentemente da estratégia de Um Lugar ao Sol, que busca ridicularizar os moradores, mostrando-os como fúteis ou levianos, Vista Mar mergulha no vazio: grande parte desses apartamentos está simplesmente à venda, à procura de um morador. O vazio desse amplo espaço avança portanto do meramente geográfico (o filme rastreia os corredores, os halls de entrada, as inúmeras suítes) para um contexto que vai além do físico: o absurdo dessa própria situação de desigualdade. Ou seja, a ironia passa a coabitar a própria estrutura do curta, e não simplesmente da relação entre os depoimentos e a montagem. Ainda, Vista Mar é provocativo porque se utiliza da ironia: o curta se abre com uma paródia de um anúncio publicitário de venda desses apartamentos, caricaturizando uma suposta simulação das estratégias visuais e sonoras dessas peças audiovisuais. Em complemento a isso, há uma surpreendente estratégia de abordagem: para ter acesso aos apartamentos, a equipe do curta se fez passar por uma equipe de filmagem contratada por um grande empresário de São Paulo, iludindo os corretores a apresentarem os apartamentos como um potencial de venda. A forma curiosa como o curta se desdobra entre a ironia, entre a provocação da ética da forma de abordagem e o exame crítico da vida desigual em Fortaleza tornam Vista Mar um documentário surpreendente, atípico, que exemplifica o desejo de contestação dessa nova geração do audiovisual de Fortaleza.
A ironia é uma das chaves de Longa Vida ao Cinema Cearense, curta-manifesto realizado pelos Irmãos Pretti, dois cariocas que chegaram em Fortaleza e começaram a interagir com a cena audiovisual da cidade, através de cursos sobre cinema contemporâneo e estimulando a produção com “orçamento zero”. Longa Vida é ao mesmo tempo uma ode e um manifesto. De um lado, ele parece criticar um contexto oficialesco para a realização audiovisual no Brasil, baseada em editais de seleção de projetos: um diretor com uma máscara de Mickey Mouse (influência do curta Espuma e Osso) tem seu projeto recusado por uma comissão. Por outro, é um “brinde à resistência”, quando, na segunda parte, as estratégias de ironia se desfazem, quando as máscaras dos personagens são deixadas na rua, e passamos – sem “música-clima” e sem uma imagem “mega colorida” – a simplesmente acompanhar o percurso dos realizadores (agora não mais personagens) pelas ruas do Centro de Fortaleza no amanhecer do dia. Essa insistência no percurso e nos planos longos, calcando a realização muito mais num processo ininterrupto do que num ponto de chagada, que tanto marca o cinema dos Irmãos Pretti, é uma das chaves de entrada no posterior Estrada Para Ythaca, cuja inesperada repercussão marcou o amadurecimento do coletivo Alumbramento.
Ao mesmo tempo, um curta da sessão comprova que juventude não é questão de idade, e sim de espírito. La Muerte é um exemplo da vitalidade inventiva do trabalho do veterano Firmino Holanda, que, mesmo recluso, permanece realizando em Fortaleza. Firmino possui uma posição tão curiosa nesse cenário que teve curtas incluídos em todas as sessões da Mostra Cariri: além de La Muerte no Cearense Contemporâneo, Capistrano no Quilo foi exibido no Panorama Cearense, e Na Pele, no de Animação. La Muerte é um ensaio visual que reflete não tanto a morte, mas propriamente sua representação através de imagens e de ritmos. Evocando seja os primeiros ensaios fotográficos de Muybridge seja o cinema de montagem de Eisenstein, Firmino propõe uma relação ambígua entre a fotografia e o cinema, ou ainda, entre o estático e o movimento. A notável articulação entre a imagem e o som e o ritmo particular que pulsa da montagem mostram o refinamento da juventude de Firmino Holanda, ainda que ela interaja pouco com o atual caldo cultural de renovação do audiovisual da cidade.
Comentários