Irezumi
Tatuagem (Irezumi)
Yasuzo Masumura
**
Tatuagem é o segundo filme do diretor japonês Yasuzo Masumura a que tive acesso. O anterior, Manji (Cega Obsessão), lançado em vídeo no Brasil, havia causado em mim excelente impressão. Irezumi , de 1966, retoma algumas das questões de Manji. Talvez a semelhança com Manji seja a de que ambos são adaptações de peças do esccritor japonês Junichiro Tanizaki. Desta vez, a adaptação é de ninguém menos que Kaneto Shindo, outro diretor japonês de destaque (fez filmes brilhantes como Ilha Nua). O filme conta a história de uma mulher que, ao fugir da casa dos pais para se casar clandestinamente com um criado, acaba sendo raptada e se transforma numa gueixa. Um artista, ao tatuar uma enorme aranha em suas costas, faz com que essa mulher misteriosamente tenha sua personalidade afetada pela tatuagem, levando a seu criado-amado a matar um conjunto de pessoas. Em comum com Manji há um conjunto de fatores, em especial um olhar pelo amor e pela necessidade do outro que passa por um tom da personalidade humana doentio e sombrio, quase psicótico. De outro lado, o enfoque de restrição da liberdade humana (o rapto) como situação-limite em que essa personalidade sombria pode desabrochar, sendo que o contato com o outro-amado resulta em morte e tragédia. Um fatalismo tipicamente japonês mas realçado por uma mise-en-scene de grande elegância e sofisticação formal. Em Irezumi, destaca-se o cinemascope e as cores, em tons pastéis que se combinam ao mesmo tempo com um certo aspecto sombrio, ainda que quase integralmente filmado em estúdio. Para revelar um certo aprisionamento de sedus personagens, é interessante como Masumura trabalha as bordas do enquadramento, sendo que em diversos momentos ele usa o cinemascope para enquadrar seus personagens persos a determinados cantos da tela (ver figura).
Esse filme noir filmado a cores em cinemascope tem seus momentos irregulares, mas impressiona a habilidade de Masumura em compor um tom misterioso e ambíguo ao filme. Nunca se sabe ao certo até que ponto as atitudes da mulher são de fato influenciadas pela aranha, ou se ela, em sua própria personalidade, já possuía essas características. Com isso, o que em última instância Masumura discute é o livre arbítrio, ou ainda, a relação doentia entre amor e violência, o tema típico da filmografia do diretor.
Por fim, há o processo de criação. O amor, a dedicação do tatuador gerou um verdadeiro monstro: ao externalizar de forma tão autêntica o que existia dentro de si, o artista gerou uma anomalia, gênese da morte. Lembramos que também em Manji o processo de criação está em primeiro plano: o sequestrador era um criador. A arte é composta por artistas macabros, que tem um poder quase maligno de exorcizar demônios, ou ainda, de utilizar a sua arte de forma sinistra.
Recentemente falou-se sobre um filme do Cronemberg chamado Senhores do Crime, na forma como o filme trabalha a questão do registro no corpo de um modo de vida. Mas Tatuagem leva a questão em bem mais profundidade que o filme do Cronemberg. Marcada no corpo, a gueixa não pode mais ser “uma mulher como qualquer outra”; marcada na alma, ela deve cumprir o seu destino, mas, de novo, há esse destino? A combinação entre dor e prazer no rosto plácido da gueisha ao receber essa tatuagem traz consigo essa ambguidade, que é a marca do bom cinema japonês. Otsuya, ferida, torna-se forte, revela-se contra sua condição de mulher aprisionada, de vítima da violência dos homens (nisso, é libertário em relação à passividade da condição feminina da Oharu de Mizoguchi). Ao contrário, aranha venenosa, que fere mortalmente os homens apaixonados que se rendem à sua seiva.
Formalmente Irezumi se aproxima de um certo cinema japonês dos anos sessenta, de enorme domínio plástico, que enfoca personagens marginais e sua personalidade doentia. Além da elegância da mise-en-scene, o início do filme acontece numa espécie de prólogo, com a cena-chave do filme (o instante em que Otsiya é tatuada), sendo que há um flashback a partir do qual a história é contada, numa vigorosa elipse temporal.
Menos conhecido que vários de seus contemporâneos, a filmografia de Yasuzo Masumura é ainda pouco explorada no Brasil, ainda que Cega Obsessão, seu filme mais conhecido tenha sido milagrosamente lançado em homevideo por aqui. Resta assistir a outros de seus filmes para investigar se o diretor permanece nessa mesma linha.
Yasuzo Masumura
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Tatuagem é o segundo filme do diretor japonês Yasuzo Masumura a que tive acesso. O anterior, Manji (Cega Obsessão), lançado em vídeo no Brasil, havia causado em mim excelente impressão. Irezumi , de 1966, retoma algumas das questões de Manji. Talvez a semelhança com Manji seja a de que ambos são adaptações de peças do esccritor japonês Junichiro Tanizaki. Desta vez, a adaptação é de ninguém menos que Kaneto Shindo, outro diretor japonês de destaque (fez filmes brilhantes como Ilha Nua). O filme conta a história de uma mulher que, ao fugir da casa dos pais para se casar clandestinamente com um criado, acaba sendo raptada e se transforma numa gueixa. Um artista, ao tatuar uma enorme aranha em suas costas, faz com que essa mulher misteriosamente tenha sua personalidade afetada pela tatuagem, levando a seu criado-amado a matar um conjunto de pessoas. Em comum com Manji há um conjunto de fatores, em especial um olhar pelo amor e pela necessidade do outro que passa por um tom da personalidade humana doentio e sombrio, quase psicótico. De outro lado, o enfoque de restrição da liberdade humana (o rapto) como situação-limite em que essa personalidade sombria pode desabrochar, sendo que o contato com o outro-amado resulta em morte e tragédia. Um fatalismo tipicamente japonês mas realçado por uma mise-en-scene de grande elegância e sofisticação formal. Em Irezumi, destaca-se o cinemascope e as cores, em tons pastéis que se combinam ao mesmo tempo com um certo aspecto sombrio, ainda que quase integralmente filmado em estúdio. Para revelar um certo aprisionamento de sedus personagens, é interessante como Masumura trabalha as bordas do enquadramento, sendo que em diversos momentos ele usa o cinemascope para enquadrar seus personagens persos a determinados cantos da tela (ver figura).
Esse filme noir filmado a cores em cinemascope tem seus momentos irregulares, mas impressiona a habilidade de Masumura em compor um tom misterioso e ambíguo ao filme. Nunca se sabe ao certo até que ponto as atitudes da mulher são de fato influenciadas pela aranha, ou se ela, em sua própria personalidade, já possuía essas características. Com isso, o que em última instância Masumura discute é o livre arbítrio, ou ainda, a relação doentia entre amor e violência, o tema típico da filmografia do diretor.
Por fim, há o processo de criação. O amor, a dedicação do tatuador gerou um verdadeiro monstro: ao externalizar de forma tão autêntica o que existia dentro de si, o artista gerou uma anomalia, gênese da morte. Lembramos que também em Manji o processo de criação está em primeiro plano: o sequestrador era um criador. A arte é composta por artistas macabros, que tem um poder quase maligno de exorcizar demônios, ou ainda, de utilizar a sua arte de forma sinistra.
Recentemente falou-se sobre um filme do Cronemberg chamado Senhores do Crime, na forma como o filme trabalha a questão do registro no corpo de um modo de vida. Mas Tatuagem leva a questão em bem mais profundidade que o filme do Cronemberg. Marcada no corpo, a gueixa não pode mais ser “uma mulher como qualquer outra”; marcada na alma, ela deve cumprir o seu destino, mas, de novo, há esse destino? A combinação entre dor e prazer no rosto plácido da gueisha ao receber essa tatuagem traz consigo essa ambguidade, que é a marca do bom cinema japonês. Otsuya, ferida, torna-se forte, revela-se contra sua condição de mulher aprisionada, de vítima da violência dos homens (nisso, é libertário em relação à passividade da condição feminina da Oharu de Mizoguchi). Ao contrário, aranha venenosa, que fere mortalmente os homens apaixonados que se rendem à sua seiva.
Formalmente Irezumi se aproxima de um certo cinema japonês dos anos sessenta, de enorme domínio plástico, que enfoca personagens marginais e sua personalidade doentia. Além da elegância da mise-en-scene, o início do filme acontece numa espécie de prólogo, com a cena-chave do filme (o instante em que Otsiya é tatuada), sendo que há um flashback a partir do qual a história é contada, numa vigorosa elipse temporal.
Menos conhecido que vários de seus contemporâneos, a filmografia de Yasuzo Masumura é ainda pouco explorada no Brasil, ainda que Cega Obsessão, seu filme mais conhecido tenha sido milagrosamente lançado em homevideo por aqui. Resta assistir a outros de seus filmes para investigar se o diretor permanece nessa mesma linha.
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