Changeling
A Troca
de Clint Eastwood
São Luiz 4 sab 21hs
***
Escrever sobre A Troca me faz retomar algumas observações de um texto anterior sobre Leonera e 174. Aqui, novamente, há a irresistível história de uma mãe que luta por um filho que lhe é arrancado, e há também, por outro lado, esse diálogo entre “fatos reais” e “encenação”. Mas aqui, ao contrário de Leonera, não há a busca por um cinema contemporâneo que dialogue de forma sutil entre o documentário e a ficção, mas também não há, de outro lado, a busca pelo cinema clássico como forma de “apaziguar”, de tornar mais palatável, uma certa história. As comparações entre os três filmes poderiam assumir aqui, neste texto, diversas proporções, porque no filme de Eastwood, a busca da mãe por esse filho também assume outras proporções: a idéia de desvelar a decadência, o absurdo de certas instituições, de uma estrutura social que interage com essa história através de uma teia de interrelações (assim como os outros dois filmes também o faziam). E se, de certa forma, contrastei a visão do mundo da “apologia da miséria” de 174 à “prisão como símbolo de um encontro de si mesmo” de Leonera, em A Troca Eastwood apresenta uma visão um tanto mais ambígua a esse painel.
É curioso referir-se a este A Troca como espelho de uma ambiguidade já que, de um certo ponto de vista, o que se busca no filme é exatamente a recuperação de um certo cinema clássico na composição do perfil dos personagens, nas passagens de tempo, no padrão de produção, na simetria precisa e exata de cada um dos elementos de linguagem em torno de uma unidade cênica, etc. Mas o cinema de Eastwood – e é isso o que basicamente o alinha a uma certa tradição cinematográfica americana – utiliza o cinema clássico essencialmente como a busca de uma ética, ética das pessoas e ética de uma nação – e é isso o que basicamente o torna o principal herdeiro do cinema de John Ford. A maturidade com que Eastwood utiliza todos esses elementos, cuja combinação está longe de ser trivial ou rasteira, encanta o cinéfilo atento a essa artesania, até porque esse cuidado revela, mais que mero efeito de artesania, o princípio básico de um cinema ético, de um cinema clássico, de uma visão de mundo.
Filme de grande domínio técnico, de opulência no modo de produção e de enorme impacto emocional e de expressão pessoal, A Troca é um grande filme americano, como só o cinema americano consegue ser. É impressionante a segurança com que Eastwood conduz a narrativa como um maestro, como confere ao filme um tom particular, como conduz esse melodrama como um adagio mas ao mesmo tempo sem nunca cair num excesso sentimentalista, ao contrário, segurando com mão firme o enorme drama dessa mãe, com tempos largos e reflexivos através de uma narrativa de mais de duas horas mas que nunca perde o ritmo (mesmo com tramas paralelas articuladas com grande habilidade), e como conduz todo o elenco bastante homogêneo e extremamente seguro, com destaque para a atuação de contenção de Angelina Jolie, sabiamente beneficiada por um figurino fantástico que dá à sua personagem uma dificuldade de abrir os braços, tendo que mantê-los colados ao corpo (o que faz com que ela fique ligeiramente “arqueada”) e a um chapéu semi-afundado num rosto com uma maquiagem sempre expressiva.
Uma mãe que perde um filho e que, tempos mais tarde, a polícia traz um menino que a mãe descobre não ser seu, mas outra criança parecida. A polícia, no entanto, quer que o caso esteja resolvido, e tenta assustar a mãe.
A luta de uma mãe por um filho. A luta de um povo por uma nação, pela lisura de suas instituições.
Num crescendo de tirar o fôlego, essa mãe luta por seu filho e quanto cada vez mais luta, cada vez mais a polícia mostra como as instituições podem esmagar a luta de um indivíduo. Mas quanto mais isso aocntece mais cresce em força a luta de uma sociedade organizada em corrigir o rumo dessas instiuições de forma que elas representem a luta legítima de cada um de seus indivíduos.
That´s what is called “democracy”.
A crítica reformista de Eastwood é de um lado um enorme e comovente cântico épico a favor da liberdade do indivíduo e por outro lado um sermão reformista legitimando a representação das instituições. É ao mesmo tempo uma crítica contundente ao desmantelamento de uma política norte-americana (um filme de denúncia) e ao mesmo tempo é uma ode ao uso da força e ao cultivo da violência como força de restabelecer uma ordem.
O sucesso dessa mãe tem um tom inevitável de redenção de uma nação.
Esse tom reacionário (político, direitista, religioso) ganha seu clímax na inacreditável cena de enforcamento do assassino.
* * *
De outro lado, o que particularmente me interessa bem mais, A Troca é um filme extremamente melancólico, em que essa “redenção” é apaziguada no “epílogo” do filme.
Isso talvez comece na brilhante conclusão da cena em que Jolie vai à prisão ouvir as últimas palavras do condenado que, no entanto, se recusa a dizer que matou seu filho. Ele é retirado, o guarda diz “desculpe madame” e a câmera fecha as barras da cela e a prende lá dentro, quase num paralelo de quando ela é trancafiada no asilo psiquiátrico. Claro, pois “o inferno é aqui”, “o pinel é aqui” e “a prisão é aqui”, aqui neste mundo, único onde podemos pagar nossas penas. Com o silêncio do condenado, Jolie recebe a sua sentença (pena de “prisão perpétua”): a de ter que continuamente esperar por seu filho.
Pena que pode eventualmente ter um outro nome (mais bonito, mais palatável aos olhos do público): “esperança”. Jolie está condenada a ter esperança até o fim da vida. É incrível como, na cena final, Eastwood prorroga algumas expectativas do espectador, que nunca chegam a se realizar mas que ficam mais próximas, como uma “esperança” de que na próxima cena elas se resolvam, o que nunca acontece de fato. O chefe a convida para jantar e ela recusa. Mas ela vai procurá-lo no corredor (agora vai!). Não vai, mas se a zebra do filme do Capra vencer o Oscar eles vão jantar. O filme ganha (agora vai!) mas não vai porque ela recebeu um telefonema de um garoto encontrado (agora vai! É o filho dela!). Chegando à delegacia, percebemos que não é o filho dela, mas um amigo que diz que talvez ele estaja vivo. Agora não foi, mas há uma esperança. Ela olha com um olhar sensual para o policial corajoso que desvendou todo o sistema de corrupção. Ela diz a ele que há “esperança”. Agora não foi, quem sabe mais tarde? O filme acaba. Depois de conseguir resolver todo esse caos, o que resta para ela? Nada, a não ser caminhar completamente sozinha pela rua (o que é pior, ela não está sozinha, está em companhia da tal “esperança”), o que me lembra Ozu “a vida é mesmo uma grande decepção, não?”
de Clint Eastwood
São Luiz 4 sab 21hs
***
Escrever sobre A Troca me faz retomar algumas observações de um texto anterior sobre Leonera e 174. Aqui, novamente, há a irresistível história de uma mãe que luta por um filho que lhe é arrancado, e há também, por outro lado, esse diálogo entre “fatos reais” e “encenação”. Mas aqui, ao contrário de Leonera, não há a busca por um cinema contemporâneo que dialogue de forma sutil entre o documentário e a ficção, mas também não há, de outro lado, a busca pelo cinema clássico como forma de “apaziguar”, de tornar mais palatável, uma certa história. As comparações entre os três filmes poderiam assumir aqui, neste texto, diversas proporções, porque no filme de Eastwood, a busca da mãe por esse filho também assume outras proporções: a idéia de desvelar a decadência, o absurdo de certas instituições, de uma estrutura social que interage com essa história através de uma teia de interrelações (assim como os outros dois filmes também o faziam). E se, de certa forma, contrastei a visão do mundo da “apologia da miséria” de 174 à “prisão como símbolo de um encontro de si mesmo” de Leonera, em A Troca Eastwood apresenta uma visão um tanto mais ambígua a esse painel.
É curioso referir-se a este A Troca como espelho de uma ambiguidade já que, de um certo ponto de vista, o que se busca no filme é exatamente a recuperação de um certo cinema clássico na composição do perfil dos personagens, nas passagens de tempo, no padrão de produção, na simetria precisa e exata de cada um dos elementos de linguagem em torno de uma unidade cênica, etc. Mas o cinema de Eastwood – e é isso o que basicamente o alinha a uma certa tradição cinematográfica americana – utiliza o cinema clássico essencialmente como a busca de uma ética, ética das pessoas e ética de uma nação – e é isso o que basicamente o torna o principal herdeiro do cinema de John Ford. A maturidade com que Eastwood utiliza todos esses elementos, cuja combinação está longe de ser trivial ou rasteira, encanta o cinéfilo atento a essa artesania, até porque esse cuidado revela, mais que mero efeito de artesania, o princípio básico de um cinema ético, de um cinema clássico, de uma visão de mundo.
Filme de grande domínio técnico, de opulência no modo de produção e de enorme impacto emocional e de expressão pessoal, A Troca é um grande filme americano, como só o cinema americano consegue ser. É impressionante a segurança com que Eastwood conduz a narrativa como um maestro, como confere ao filme um tom particular, como conduz esse melodrama como um adagio mas ao mesmo tempo sem nunca cair num excesso sentimentalista, ao contrário, segurando com mão firme o enorme drama dessa mãe, com tempos largos e reflexivos através de uma narrativa de mais de duas horas mas que nunca perde o ritmo (mesmo com tramas paralelas articuladas com grande habilidade), e como conduz todo o elenco bastante homogêneo e extremamente seguro, com destaque para a atuação de contenção de Angelina Jolie, sabiamente beneficiada por um figurino fantástico que dá à sua personagem uma dificuldade de abrir os braços, tendo que mantê-los colados ao corpo (o que faz com que ela fique ligeiramente “arqueada”) e a um chapéu semi-afundado num rosto com uma maquiagem sempre expressiva.
Uma mãe que perde um filho e que, tempos mais tarde, a polícia traz um menino que a mãe descobre não ser seu, mas outra criança parecida. A polícia, no entanto, quer que o caso esteja resolvido, e tenta assustar a mãe.
A luta de uma mãe por um filho. A luta de um povo por uma nação, pela lisura de suas instituições.
Num crescendo de tirar o fôlego, essa mãe luta por seu filho e quanto cada vez mais luta, cada vez mais a polícia mostra como as instituições podem esmagar a luta de um indivíduo. Mas quanto mais isso aocntece mais cresce em força a luta de uma sociedade organizada em corrigir o rumo dessas instiuições de forma que elas representem a luta legítima de cada um de seus indivíduos.
That´s what is called “democracy”.
A crítica reformista de Eastwood é de um lado um enorme e comovente cântico épico a favor da liberdade do indivíduo e por outro lado um sermão reformista legitimando a representação das instituições. É ao mesmo tempo uma crítica contundente ao desmantelamento de uma política norte-americana (um filme de denúncia) e ao mesmo tempo é uma ode ao uso da força e ao cultivo da violência como força de restabelecer uma ordem.
O sucesso dessa mãe tem um tom inevitável de redenção de uma nação.
Esse tom reacionário (político, direitista, religioso) ganha seu clímax na inacreditável cena de enforcamento do assassino.
* * *
De outro lado, o que particularmente me interessa bem mais, A Troca é um filme extremamente melancólico, em que essa “redenção” é apaziguada no “epílogo” do filme.
Isso talvez comece na brilhante conclusão da cena em que Jolie vai à prisão ouvir as últimas palavras do condenado que, no entanto, se recusa a dizer que matou seu filho. Ele é retirado, o guarda diz “desculpe madame” e a câmera fecha as barras da cela e a prende lá dentro, quase num paralelo de quando ela é trancafiada no asilo psiquiátrico. Claro, pois “o inferno é aqui”, “o pinel é aqui” e “a prisão é aqui”, aqui neste mundo, único onde podemos pagar nossas penas. Com o silêncio do condenado, Jolie recebe a sua sentença (pena de “prisão perpétua”): a de ter que continuamente esperar por seu filho.
Pena que pode eventualmente ter um outro nome (mais bonito, mais palatável aos olhos do público): “esperança”. Jolie está condenada a ter esperança até o fim da vida. É incrível como, na cena final, Eastwood prorroga algumas expectativas do espectador, que nunca chegam a se realizar mas que ficam mais próximas, como uma “esperança” de que na próxima cena elas se resolvam, o que nunca acontece de fato. O chefe a convida para jantar e ela recusa. Mas ela vai procurá-lo no corredor (agora vai!). Não vai, mas se a zebra do filme do Capra vencer o Oscar eles vão jantar. O filme ganha (agora vai!) mas não vai porque ela recebeu um telefonema de um garoto encontrado (agora vai! É o filho dela!). Chegando à delegacia, percebemos que não é o filho dela, mas um amigo que diz que talvez ele estaja vivo. Agora não foi, mas há uma esperança. Ela olha com um olhar sensual para o policial corajoso que desvendou todo o sistema de corrupção. Ela diz a ele que há “esperança”. Agora não foi, quem sabe mais tarde? O filme acaba. Depois de conseguir resolver todo esse caos, o que resta para ela? Nada, a não ser caminhar completamente sozinha pela rua (o que é pior, ela não está sozinha, está em companhia da tal “esperança”), o que me lembra Ozu “a vida é mesmo uma grande decepção, não?”
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