Mostra Seijun Suzuki
Mostra Seijun Suzuki - CCBB/RJ
História de uma prostituta sex 7 18:30 ***
Elegia da Briga dom 9 16:30 ** ½
A Marca de um assassino dom 9 16:30 ***
Detetive Bureau 2-3 ter 11 18:30 **
A Vida de um tatuado qui 13 18:30 **
O CCBB forneceu uma rara oportunidade de ter contato com uma parte da obra do japonês Seijun Suzuki, para quem não viu a retrospectiva do diretor numa das Mostras de São Paulo, organizada pelo Cakoff a pedido do Reichenbach. Passaram oito filmes do período inicial de Suzuki, feitos entre 1963 e 1967. Passaram oito dos 14 filmes que ele fez só nesse período. Daí se vê a abundante produção do diretor, e se percebe que são filmes rápidos, não tão trabalhados, o que seria impossível dado esse tempo.
Mas ainda assim surpreende a qualidade do conjunto dos filmes. Se não há nenhuma obra-prima, não há nenhum filme razoável ou que tenha soado dispensável, todos encantam tanto pela habilidade da artesania quanto pelo vigor e pela energia anárquica criada pelo diretor.
É curioso ver, pelas próprias declarações de Suzuki na época, que o diretor era bastante conscinete de seu papel no cinema japonês de então: fazer um cinema provocativo de oposição ou de contradição aos pilares do cinema japonês clássico. O respeito à tradição e aos valores tipicamente orientais e a delicadeza tipicamente oriental na construção de uma mise-em-scene são questionadas por Suzuki, com um cinema moderno, corrosivo, anárquico e que traz consigo diversas referências a uma cultura ocidental. Mas por outro lado, esse cinema moleque, quase irresponsável não consegue esconder seu profundo apreço pelas questões de sempre: os desafios da nação japonesa no pós-guerra entre a tradição e a modernidade, a contrapartida moral/ética de seus personagens marginais, vivendo no fio da navalha. Praticamente Suzuki se debruçou sobre as mesmas questões dos mestres japoneses. Só as respostas que obteve é que foram diferentes.
Visto de hoje, quarenta anos depois, nos surpreende a atualidade do cinema de Suzuki: as sessões de seus filmes no CCBB estavam cheias de jovens que se divertiram com os filmes. esses filmes passam a ser quase como caricaturas de si mesmos, e resvalam num clima de auto-paródia, um clima kitsch com um total domínio plástico do décor e da cor, quando é o caso. São atuais também porque são profundamente apaixonados pela linguagem: no belíssimo uso do cinemascope (presente em todos os cinco filmes vistos), com uma montagem expressiva, repleta de elipses, ou de recursos como corte seco do plano geral para o primeiríssimo plano.
Os filmes de Suzuki encantam por seu frescor, por sua juventude: são filmes que querem ser maiores que a vida, que não cabem na tela, que se expandem para todos os lados da borda da tela possíveis, mesmo em se tratando de um amplo cinemascope. São filmes moleques, cheios de grandes reviravoltas narrativas, pois a vida pode ser o que a gente quiser que ela seja, e quando os personagens estão cansados do rumo das coisas, eles têm a liberdade de mudar radicalmente, e fazer uma grande viagem (como em Elegia da Briga), e o filme vira uma outra coisa. Suzuki sempre arrisca, seja na linguagem, seja na construção dos personagens, seja na reviravolta do roteiro, com uma enorme segurança para mudar o tom dos filmes. Em vários deles é incrível como o diretor consegue imprimir um tom ambíguo à narrativa, com grandes mudanças de tom. O que era uma comédia se torna um melodrama, e depois retorna à comédia, para depois virar um filme de ação, etc, etc. arrisca sem medo de errar, e seu percentual de acerto é muito alto, mesmo em se tratando de produções ligeiras, filmadas muito rapidamente. Na parte da artesania, o cinema de Suzuki também se destaca pela plasticidade, pelas soluções criativas e pela engenhosidade.
* * *
Detetive Bureau 2-3 é o primeiro dos filmes que Suzuki dirigiu para a Nikkatsu, e é seu filme mais inconseqüente. Às vezes tem um clima kitsch que parece um filme do Roberto Carlos. Um clima de auto-paródia nítido, um belíssimo uso da cor, e um domínio técnico absoluto mesmo em seu primeiro filme. Cinema leve, despretensioso bem feito, de grande energia e inventividade, ainda que abaixo dos filmes do diretor.
Elegia da Briga é o que mais surpreende no seu tom ambíguo de comédia irreverente, e pelo grande número de transformações narrativas. A educação e a disciplina tipicamente japonesas ganham um contraponto enérgico pelo diretor como se fosse uma espécie de metalinguagem sobre o papel de seu cinema. Mas enquanto briga, bate e apanha e tenta sobreviver das enrascadas em que se mete, esse jovem acaba tendo uma espécie de “educação sentimental” própria, ele aprende a ser homem. A vida, a rua o ensina mais que a escola. As instituições e a tradição japonesas são impotentes ante o cenário de transformações da sociedade japonesa.
A Vida de um tatuado é uma espécie de western japonês com elementos da Yakuza, e pega um tema conhecido: dois irmãos criminosos tentam se refugiar de seu passado de crimes numa cidadezinha do interior mas não conseguem fugir das sombras de seu passado. Após o começo de ação, o filme tem uma mudança de tom quando vai para a cidadezinha e depois com os estranhos delírios de um dos irmãos, que é artista (escultor) e quer usar a mulher do chefe como modelo. Mas depois quando descobertos o filme volta para sua vocação de filme de ação, até acabar com uma delirante seqüência de espadas, completamente irreal, que o curador da mostra no texto do catálogo muito apropriadamente lembrou as de Kill Bill do Tarantino. Visualmente é impressionante, mas é menos radical que a de Kanto Wanderer, com seu tom verde e o sangue jorrando nas cortinas ao final. A parte psicológica no entanto é ingênua e lá pelo meio faz o filme ficar um pouco capenga.
História de uma prostituta é um típico melodrama, e o estilo de mudanças de tom de Suzuki se faz menos presente, para ser um filme mais orgânico em termos de sua estrutura narrativa. O filme fala de sexo, vingança, egos e traição de uma forma muito impressionante. Uma prostituta é humilhada por um oficial agressivo, que gosta de subjugar a todos. Ela resolve, para se vingar, usar um soldado acanhado para provocar ciúmes no oficial. A idéia de traição e vingança é levada ao extremo, seja no nível sexual, seja no profissional (o exército e seus códigos de conduta) quando no nível nacionalista (a nação japonesa). Com isso, Suzuki faz um filme profundamente questionador dos “códigos de conduta” da nação japonesa em conseqüência da guerra, e do preço pago para sua reconstrução. O final, extremamente cruel, coloca a questão, desmascarando o “heroísmo” da sobrevivência. Os que sobrevivem são aqueles que jogam com as regras do jogo, e não os que respeitam os códigos de conduta da conservadora sociedade japonesa.
A Marca de um Assassino é dos cinco, o filme mais radical e delirante de Suzuki. Quase uma paródia ambígua a um filme noir, o assassino representado por Jô Shishido tenta salvar sua pele num mundo de sombras, de pistas falsas, de delírios e de aberrações. Visualmente fascinante, com grandes mudanças de tom, com um ritmo surpreendente, com uma narrativa extremamente moderna, o filme vai cada vez mais nos fazendo mergulhar nesse mundo estranho, perturbador e cada vez mais intimista. Ao final vira um thriller psicológico ambíguo, em que o assassino busca o invisível “número um” que é praticamente um alter-ego de si mesmo, e nessa aventura de superar-se, o assassino acaba desafiando os seus próprios limites, o que no fundo representa a essência do cinema “na corda bamba” de Suzuki, essa mistura irreverente e moleque, esse desafio de viver, esse delírio visual e a tendência ao melodrama e à comédia.
E por fim, deixo o tema para reflexão: embora queira demolir e criticar os pilares da sociedade e do cinema japoneses, Suzuki critica para reafirmá-los. Não é que seja conservador, ao contrário, mas por trás de seu cinema corrosivo, Suzuki faz um cinema profundamente atual e – pasmem – profundamente japonês.
História de uma prostituta sex 7 18:30 ***
Elegia da Briga dom 9 16:30 ** ½
A Marca de um assassino dom 9 16:30 ***
Detetive Bureau 2-3 ter 11 18:30 **
A Vida de um tatuado qui 13 18:30 **
O CCBB forneceu uma rara oportunidade de ter contato com uma parte da obra do japonês Seijun Suzuki, para quem não viu a retrospectiva do diretor numa das Mostras de São Paulo, organizada pelo Cakoff a pedido do Reichenbach. Passaram oito filmes do período inicial de Suzuki, feitos entre 1963 e 1967. Passaram oito dos 14 filmes que ele fez só nesse período. Daí se vê a abundante produção do diretor, e se percebe que são filmes rápidos, não tão trabalhados, o que seria impossível dado esse tempo.
Mas ainda assim surpreende a qualidade do conjunto dos filmes. Se não há nenhuma obra-prima, não há nenhum filme razoável ou que tenha soado dispensável, todos encantam tanto pela habilidade da artesania quanto pelo vigor e pela energia anárquica criada pelo diretor.
É curioso ver, pelas próprias declarações de Suzuki na época, que o diretor era bastante conscinete de seu papel no cinema japonês de então: fazer um cinema provocativo de oposição ou de contradição aos pilares do cinema japonês clássico. O respeito à tradição e aos valores tipicamente orientais e a delicadeza tipicamente oriental na construção de uma mise-em-scene são questionadas por Suzuki, com um cinema moderno, corrosivo, anárquico e que traz consigo diversas referências a uma cultura ocidental. Mas por outro lado, esse cinema moleque, quase irresponsável não consegue esconder seu profundo apreço pelas questões de sempre: os desafios da nação japonesa no pós-guerra entre a tradição e a modernidade, a contrapartida moral/ética de seus personagens marginais, vivendo no fio da navalha. Praticamente Suzuki se debruçou sobre as mesmas questões dos mestres japoneses. Só as respostas que obteve é que foram diferentes.
Visto de hoje, quarenta anos depois, nos surpreende a atualidade do cinema de Suzuki: as sessões de seus filmes no CCBB estavam cheias de jovens que se divertiram com os filmes. esses filmes passam a ser quase como caricaturas de si mesmos, e resvalam num clima de auto-paródia, um clima kitsch com um total domínio plástico do décor e da cor, quando é o caso. São atuais também porque são profundamente apaixonados pela linguagem: no belíssimo uso do cinemascope (presente em todos os cinco filmes vistos), com uma montagem expressiva, repleta de elipses, ou de recursos como corte seco do plano geral para o primeiríssimo plano.
Os filmes de Suzuki encantam por seu frescor, por sua juventude: são filmes que querem ser maiores que a vida, que não cabem na tela, que se expandem para todos os lados da borda da tela possíveis, mesmo em se tratando de um amplo cinemascope. São filmes moleques, cheios de grandes reviravoltas narrativas, pois a vida pode ser o que a gente quiser que ela seja, e quando os personagens estão cansados do rumo das coisas, eles têm a liberdade de mudar radicalmente, e fazer uma grande viagem (como em Elegia da Briga), e o filme vira uma outra coisa. Suzuki sempre arrisca, seja na linguagem, seja na construção dos personagens, seja na reviravolta do roteiro, com uma enorme segurança para mudar o tom dos filmes. Em vários deles é incrível como o diretor consegue imprimir um tom ambíguo à narrativa, com grandes mudanças de tom. O que era uma comédia se torna um melodrama, e depois retorna à comédia, para depois virar um filme de ação, etc, etc. arrisca sem medo de errar, e seu percentual de acerto é muito alto, mesmo em se tratando de produções ligeiras, filmadas muito rapidamente. Na parte da artesania, o cinema de Suzuki também se destaca pela plasticidade, pelas soluções criativas e pela engenhosidade.
* * *
Detetive Bureau 2-3 é o primeiro dos filmes que Suzuki dirigiu para a Nikkatsu, e é seu filme mais inconseqüente. Às vezes tem um clima kitsch que parece um filme do Roberto Carlos. Um clima de auto-paródia nítido, um belíssimo uso da cor, e um domínio técnico absoluto mesmo em seu primeiro filme. Cinema leve, despretensioso bem feito, de grande energia e inventividade, ainda que abaixo dos filmes do diretor.
Elegia da Briga é o que mais surpreende no seu tom ambíguo de comédia irreverente, e pelo grande número de transformações narrativas. A educação e a disciplina tipicamente japonesas ganham um contraponto enérgico pelo diretor como se fosse uma espécie de metalinguagem sobre o papel de seu cinema. Mas enquanto briga, bate e apanha e tenta sobreviver das enrascadas em que se mete, esse jovem acaba tendo uma espécie de “educação sentimental” própria, ele aprende a ser homem. A vida, a rua o ensina mais que a escola. As instituições e a tradição japonesas são impotentes ante o cenário de transformações da sociedade japonesa.
A Vida de um tatuado é uma espécie de western japonês com elementos da Yakuza, e pega um tema conhecido: dois irmãos criminosos tentam se refugiar de seu passado de crimes numa cidadezinha do interior mas não conseguem fugir das sombras de seu passado. Após o começo de ação, o filme tem uma mudança de tom quando vai para a cidadezinha e depois com os estranhos delírios de um dos irmãos, que é artista (escultor) e quer usar a mulher do chefe como modelo. Mas depois quando descobertos o filme volta para sua vocação de filme de ação, até acabar com uma delirante seqüência de espadas, completamente irreal, que o curador da mostra no texto do catálogo muito apropriadamente lembrou as de Kill Bill do Tarantino. Visualmente é impressionante, mas é menos radical que a de Kanto Wanderer, com seu tom verde e o sangue jorrando nas cortinas ao final. A parte psicológica no entanto é ingênua e lá pelo meio faz o filme ficar um pouco capenga.
História de uma prostituta é um típico melodrama, e o estilo de mudanças de tom de Suzuki se faz menos presente, para ser um filme mais orgânico em termos de sua estrutura narrativa. O filme fala de sexo, vingança, egos e traição de uma forma muito impressionante. Uma prostituta é humilhada por um oficial agressivo, que gosta de subjugar a todos. Ela resolve, para se vingar, usar um soldado acanhado para provocar ciúmes no oficial. A idéia de traição e vingança é levada ao extremo, seja no nível sexual, seja no profissional (o exército e seus códigos de conduta) quando no nível nacionalista (a nação japonesa). Com isso, Suzuki faz um filme profundamente questionador dos “códigos de conduta” da nação japonesa em conseqüência da guerra, e do preço pago para sua reconstrução. O final, extremamente cruel, coloca a questão, desmascarando o “heroísmo” da sobrevivência. Os que sobrevivem são aqueles que jogam com as regras do jogo, e não os que respeitam os códigos de conduta da conservadora sociedade japonesa.
A Marca de um Assassino é dos cinco, o filme mais radical e delirante de Suzuki. Quase uma paródia ambígua a um filme noir, o assassino representado por Jô Shishido tenta salvar sua pele num mundo de sombras, de pistas falsas, de delírios e de aberrações. Visualmente fascinante, com grandes mudanças de tom, com um ritmo surpreendente, com uma narrativa extremamente moderna, o filme vai cada vez mais nos fazendo mergulhar nesse mundo estranho, perturbador e cada vez mais intimista. Ao final vira um thriller psicológico ambíguo, em que o assassino busca o invisível “número um” que é praticamente um alter-ego de si mesmo, e nessa aventura de superar-se, o assassino acaba desafiando os seus próprios limites, o que no fundo representa a essência do cinema “na corda bamba” de Suzuki, essa mistura irreverente e moleque, esse desafio de viver, esse delírio visual e a tendência ao melodrama e à comédia.
E por fim, deixo o tema para reflexão: embora queira demolir e criticar os pilares da sociedade e do cinema japoneses, Suzuki critica para reafirmá-los. Não é que seja conservador, ao contrário, mas por trás de seu cinema corrosivo, Suzuki faz um cinema profundamente atual e – pasmem – profundamente japonês.
Comentários