AVE DREYER (II)
Dias de ira
Dias de Ira é perturbador, porque é um conflito entre o bem e o mal. Já antecipa aqui a estética que está cristalina em A Palavra, mas o tom fantástico do tema faz com que a integração seja mais natural, menos forçada. Há um clima soturno, estranhamente sobrenatural que evoca dessa obra descritiva de Dreyer. É como se os espíritos estivessem ali à espreita de tudo.
Tem a velha queimando na fogueira. É doloroso. Há uma fantástica pan para a esquerda, que culmina na cena da velha, erguendo o torso, à espera de uma iluminação que não vem. Ali está a morte. O bem e o mal. Os outros clérigos olhando. A pan, a integração, tudo no mesmo espaço. Contenção, drama, pungência.
O final é espetacular. É a tragicidade do destino, é a miséria da condição humana. É uma luta entre o bem e o mal. A atriz está extraordinária. Nunca saberemos se ela foi realmente apossada pelo demônio, ou não. O mal está em toda parte mas não conseguimos identifica-lo com certeza. O plano final é uma obra-prima. Uma iluminação. Anjo ou demônio?
Gertrud
Gertrud é uma mulher condenada. Mas ela é condenada por que nunca amou ou por que amou demais? Isso é fantástico porque é o próprio cinema de Dreyer. E Dreyer, quando o fez, estava quase morrendo.
Gertrud quer que tudo na vida seja o amor. Condena seus amantes porque, após um tempo de rotina, dedicam-se a coisas outras a não ser o amor. Gertrud idealiza demais o amor, e o amor idealizado não pode ser vivido. Mas será que Gertrud já amou? E será que seus outros amantes realmente a amaram? Porque Dreyer mostra todo esse amor através de uma estética fria, os olhares não se cruzam, tudo é inatingível, e desde o primeiro plano já sabemos que não pode nascer nada do relacionamento entre as pessoas a não ser a desgraça, a distância, a miséria... O percurso de vida de Gertrud é um percurso do abandono, da miséria, do “tornar-se frio” para sobreviver.
Por outro lado, Gertrud ama, arrisca tudo pelo seu amor. Ela não é covarde. Ela quer tentar. Mesmo se erra, não tem importância. Ou tudo ou nada: um amor de verdade ou a solidão. Um amor de mentira, isso não!
O cinema de Dreyer é frio mas é apaixonado.
É um dos filmes mais bonitos já feitos sobre o amor porque aqui não tem a papagaiada do Truffaut, os arroubos do clichê romântico. Aqui há o amor em sua complexidade: a impossibilidade de vivermos um amor pleno, porque a vida não é só amor. Ou será que é mas nós é que não temos coragem para fazê-la assim?
É um filme sobre a distância ideal entre nós e as coisas, entre nós e as pessoas. Distanciamento e proximidade. Dreyer é frio e calculista, como fria e calculista é Gertrud. Ela já amou? O cinema de Dreyer é apaixonado? Não sei dizer.
Gertrud é metalinguagem sobre o cinema de Dreyer.
No final, há a morte, porque tudo se esvai. Gertrud diz que o amor é tudo. E recita um poema mais ou menos assim...
Sou feliz?
Não,
mas já amei.
Estou viva?
Não,
mas já amei.
O “último” amante joga as cartas na fogueira. Queimam. Enquanto queimam, os dois se esquentam um pouco mais do clima frio, em volta da fogueira.
Ele sai, fecha a porta e deixa Gertrud lá, sozinha.
Fim.
A Palavra
Dez anos depois do Dias de Ira, Dreyer consegue fazer um novo filme. Dessa vez o tom fantástico tipicamente nórdico de Dias de Ira e Vampyr se vão. Fica só o realismo. O sobrenatural está lá,claro, mas de outra forma.
A Palavra é quase que um filme como os de Rosselini, mas para Dreyer o cinema vai além, porque Rosselini ainda tinha alguns cacoetes de italiano. Dreyer é nórdico, é frio.
A Palavra poderia ser um institucional sobre religião. É um filme educativo. Mas a educação para Dreyer é outra coisa.
Dreyer filma um milagre de forma realista. Porque ele brota naturalmente de uma construção de mise-en-scene e de uma construção dramatúrgica.
Em A Palavra tudo é estilo, e tudo é despojamento desse estilo. Esse é o milagre.
É preciso ter fé.
Quando Dreyer faz uma pan, ele cria um tempo e um espaço que viram dramaturgia. É o tempo e o deslocamento que criam essa rigidez e esse rigor característicos de seus filmes.
Esse tempo e esse espaço estão cobertos de luz e sombras. Não imagino um filme de Dreyer colorido. A luz (e a sombra) preenche(m) esse espaço-tempo. Ao longo de um trajeto (deslocamento), os personagens são banhados por camadas de luz e sombras.
Isto é o cinema, materialistica e matafisicamente.
Atualidade
Hoje é Semana Santa.
Ave Dreyer!
Dias de Ira é perturbador, porque é um conflito entre o bem e o mal. Já antecipa aqui a estética que está cristalina em A Palavra, mas o tom fantástico do tema faz com que a integração seja mais natural, menos forçada. Há um clima soturno, estranhamente sobrenatural que evoca dessa obra descritiva de Dreyer. É como se os espíritos estivessem ali à espreita de tudo.
Tem a velha queimando na fogueira. É doloroso. Há uma fantástica pan para a esquerda, que culmina na cena da velha, erguendo o torso, à espera de uma iluminação que não vem. Ali está a morte. O bem e o mal. Os outros clérigos olhando. A pan, a integração, tudo no mesmo espaço. Contenção, drama, pungência.
O final é espetacular. É a tragicidade do destino, é a miséria da condição humana. É uma luta entre o bem e o mal. A atriz está extraordinária. Nunca saberemos se ela foi realmente apossada pelo demônio, ou não. O mal está em toda parte mas não conseguimos identifica-lo com certeza. O plano final é uma obra-prima. Uma iluminação. Anjo ou demônio?
Gertrud
Gertrud é uma mulher condenada. Mas ela é condenada por que nunca amou ou por que amou demais? Isso é fantástico porque é o próprio cinema de Dreyer. E Dreyer, quando o fez, estava quase morrendo.
Gertrud quer que tudo na vida seja o amor. Condena seus amantes porque, após um tempo de rotina, dedicam-se a coisas outras a não ser o amor. Gertrud idealiza demais o amor, e o amor idealizado não pode ser vivido. Mas será que Gertrud já amou? E será que seus outros amantes realmente a amaram? Porque Dreyer mostra todo esse amor através de uma estética fria, os olhares não se cruzam, tudo é inatingível, e desde o primeiro plano já sabemos que não pode nascer nada do relacionamento entre as pessoas a não ser a desgraça, a distância, a miséria... O percurso de vida de Gertrud é um percurso do abandono, da miséria, do “tornar-se frio” para sobreviver.
Por outro lado, Gertrud ama, arrisca tudo pelo seu amor. Ela não é covarde. Ela quer tentar. Mesmo se erra, não tem importância. Ou tudo ou nada: um amor de verdade ou a solidão. Um amor de mentira, isso não!
O cinema de Dreyer é frio mas é apaixonado.
É um dos filmes mais bonitos já feitos sobre o amor porque aqui não tem a papagaiada do Truffaut, os arroubos do clichê romântico. Aqui há o amor em sua complexidade: a impossibilidade de vivermos um amor pleno, porque a vida não é só amor. Ou será que é mas nós é que não temos coragem para fazê-la assim?
É um filme sobre a distância ideal entre nós e as coisas, entre nós e as pessoas. Distanciamento e proximidade. Dreyer é frio e calculista, como fria e calculista é Gertrud. Ela já amou? O cinema de Dreyer é apaixonado? Não sei dizer.
Gertrud é metalinguagem sobre o cinema de Dreyer.
No final, há a morte, porque tudo se esvai. Gertrud diz que o amor é tudo. E recita um poema mais ou menos assim...
Sou feliz?
Não,
mas já amei.
Estou viva?
Não,
mas já amei.
O “último” amante joga as cartas na fogueira. Queimam. Enquanto queimam, os dois se esquentam um pouco mais do clima frio, em volta da fogueira.
Ele sai, fecha a porta e deixa Gertrud lá, sozinha.
Fim.
A Palavra
Dez anos depois do Dias de Ira, Dreyer consegue fazer um novo filme. Dessa vez o tom fantástico tipicamente nórdico de Dias de Ira e Vampyr se vão. Fica só o realismo. O sobrenatural está lá,claro, mas de outra forma.
A Palavra é quase que um filme como os de Rosselini, mas para Dreyer o cinema vai além, porque Rosselini ainda tinha alguns cacoetes de italiano. Dreyer é nórdico, é frio.
A Palavra poderia ser um institucional sobre religião. É um filme educativo. Mas a educação para Dreyer é outra coisa.
Dreyer filma um milagre de forma realista. Porque ele brota naturalmente de uma construção de mise-en-scene e de uma construção dramatúrgica.
Em A Palavra tudo é estilo, e tudo é despojamento desse estilo. Esse é o milagre.
É preciso ter fé.
Quando Dreyer faz uma pan, ele cria um tempo e um espaço que viram dramaturgia. É o tempo e o deslocamento que criam essa rigidez e esse rigor característicos de seus filmes.
Esse tempo e esse espaço estão cobertos de luz e sombras. Não imagino um filme de Dreyer colorido. A luz (e a sombra) preenche(m) esse espaço-tempo. Ao longo de um trajeto (deslocamento), os personagens são banhados por camadas de luz e sombras.
Isto é o cinema, materialistica e matafisicamente.
Atualidade
Hoje é Semana Santa.
Ave Dreyer!
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