Mostra Cearense Contemporâneo (1) - curadoria + Sábado à Noite

Neste segundo texto, sobre o primeiro dia da Mostra, procuro falar sobre o recorte da curadoria e sobre o filme Sábado à Noite.


Mostra Cearense Contemporâneo - dia 1 (sábado)

Neste sábado às 19hs houve o início das sessões da Mostra Cearense Contemporâneo na Mostra Sesc Cariri de Cultura 2010, na cidade de Juazeiro do Norte, interior do Ceará. Antes, a primeira questão que se deve colocar é sobre o porquê da realização dessa mostra, em separado do Panorama do Cinema Cearense, mais amplo, mais geral. Selecionar, definir o recorte de uma certa produção é de fato o objetivo central de uma curadoria. Quando um curador seleciona alguns filmes para compor uma mostra dentro de um panorama mais amplo, ele inevitavelmente faz um recorte: ele recorta para chamar a atenção de filmes que se interrelacionam por ter características em comum que possibilitem um diálogo. Ou seja, esse recorte oferece para o público um diálogo, deixa mais claro para o público o que se quer propor. O problema dos panoramas amplos, como o Panorama Cearense, é ser apenas um apanhado de uma produção ampla, que o dever de tentar cobrir todas as facetas dessa produção impossibilita um debate mais aprofundado sobre o mesmo, dificulta trazer à tona uma questão cinematográfica e tentar desenvolvê-la junto ao público. Por isso vejo com bons olhos a realização de recortes, como a Mostra Cearense Contemporâneo, justamente por reunir uma parcela de uma produção cearense que possui elementos em comum, trazendo ao público uma possibilidade de um diálogo sobre questões cinematográficas que vão além do mero reconhecimento de um amplo leque de filmes. Ou seja, esse recorte é feito por questões essencialmente estéticas, propositivas, e não “separatistas”, de segregar uns filmes dos outros, ou ainda por questões bélicas ou meramente oportunistas e politiqueiras.

O filme escolhido para abrir a mostra, em casamento com o dia da semana e horário de sua realização, foi Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo, talvez o mais radical dos filmes em exibição. Ou seja, de um lado, a mostra oferece de cara o seu perfil característico, sua vontade por um cinema sem concessões, por outro, causou inevitável estranhamento ao público presente. De qualquer modo, rever Sábado à Noite é sempre uma oportunidade de reavaliar uma trajetória, apesar de ainda muito recente. Isto é, apesar de Sábado à Noite ser um filme bastante contemporâneo, cuja primeira exibição foi em 2007, através do percurso do filme não deixa de coexistir o próprio percurso de uma geração em busca de sua identidade. Muita coisa já aconteceu entre 2007 e 2010, apesar de ser tão pouco tempo. Esses três anos marcaram a consolidação de uma nova geração do audiovisual aqui no Ceará e o estabelecimento de uma rede de contatos – estéticos, políticos, afetivos – em todo o Brasil: Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais. E Sábado á Noite é o primeiro passo definitivo nesse processo, um filme que abre caminhos por oferecer uma possibilidade direta, concreta, de construir essas pontes, sem abrir mão de um pensamento e de uma prática cinematográfica pulsantes, radicais, vibrantes.

Por trás da solidão do olhar de Sábado à Noite para a cidade de Fortaleza, existe, como o próprio filme faz questão de destacar, a união de uma equipe em torno de um projeto comum: ou seja, esse olhar solitário é fruto do desejo de uma equipe, pequena, mas unida. É como se se dissesse: “somos poucos, mas somos juntos; somos enquanto juntos.” Ou ainda: “juntos, transformamos nossas solidões em uma potência.” O paradoxo dessa pulsão talvez seja a grande característica que justifica o recorte dessa curadoria.

Esse paradoxo é refletido esteticamente nesse filme em particular por uma tensão muito singular, entre a imobilidade e o movimento, entre a fixidez e o fluxo. Se por um lado Sábado à Noite assume um estado de quietude, com planos extremamente longos, em que boa parte deles há pouquíssimo movimento de câmera, desconstruindo um clichê do “sábado à noite” como momento áureo do encontro e da subversão da rotina da semana, por outro lado, há um movimento incessante ao longo de todo o filme: movimento dos carros ao longo da estrada, deslocamento da equipe à procura de seus personagens. É como se o filme estivesse sempre, o tempo todo, à procura de algo que lhe escapa pelas frestas dos dedos das mãos. Quando tenta se apegar a algo, aquilo foge, de modo que toda a procura do filme é por algo fugidio, transidio, que não lhe completa. Essa busca incessante revela-se como o próprio motor de um filme cuja lógica é a da curiosidade por uma busca que não se sabe ao certo o que é, mas ao mesmo tempo contrária a uma “lógica da perseguição”, como no cinema clássico. Em Sábado à Noite, essa “curiosidade” por vasculhar um espaço-tempo curiosamente leva ao espectador a um desejo não de encontrar propriamente algo nessas imagens, mas sim deixar-se perder nelas. A forma despojada, corajosa com que Ivo se lançou nessa aventura de arremessar-se ao vazio dessa procura, que ao final não deixa de se revelar angustiante mas telúrica, e seu poder de envolver carinhosamente uma equipe nesse processo – apesar de inevitavelmente pequena (um filme feito por poucos, para poucos, mas sempre de forma intensa) – alimentou um conjunto de filmes que, em maior ou menor grau, tentou prosseguir por esse caminho, enxergou nesse caminho uma possibilidade concreta, uma espécie de luz, ainda que em preto-e-branco. Um caminho que certamente é um caminho sem volta.

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