Lust, Caution

Desejo e Perigo
De Ang Lee
Espaço de Cinema qui 28 21hs
**

Desejo e Perigo, novo filme do Ang Lee, cineasta a quem tenho profundo apreço, e que estréia no circuito comercial carioca tardiamente, após ter ganhado o Leão de Ouro em Veneza em 2007, é um filme estranho. Aparentemente, ele parece ser mais um daqueles filmes de época, envoltos em tom de espetáculo, como um Indochina, com um certo esteticismo rodeado de lugares comuns sobre a recriação de uma época, tom romântico tendo como pano de fundo transformações históricas, etc. Mas a questão é exatamente o aparentamente, pois Desejo e Perigo é um filme sobre as aparências. Por trás das aparências do filme-espetáculo, do esteticismo da grife do cinema de arte, Ang Lee, sob a base estrutural dessa superfície deixa correr o desejo, faz um filme que desconstrói essa mesma estrutura. Isso é feito de várias formas no filme, e possui aspectos múltiplos, estranhos, confusos. De um lado, isso é interessante, pois o próprio filme é sobre o desejo que pulsa por trás dos “convencionalismos” das superfícies. Ou seja, Ang Lee traz para a própria estrutura do filme toda essa ambiguidade, ou ainda, esse desconforto, entre “estar e ser”. Ou ainda de outra forma, se de um lado, Desejo e Perigo é um filme que não é cinema mainstream mas é cinema de arte espetáculo, ainda assim toda a fruição do filme (que é anestesiada pela beleza da fotografia, dos cenários, enfim do espetáculo) é acompanhada de um incômodo. E esse incômodo é gerado por algo que vem do campo estrito do cinematográfico, e esse é o encanto do filme.

Não sei se me explico muito bem. Uma outra forma de dizer isso é pensar na abertura do filme, logo após dois planos estranhos, o primeiro dele com o focinho de um cachorro de guarda. É a sequencia do mahjong. A sequência é filmada com os recursos do campo-contracampo básicos de quatro pessoas em torno de uma mesa. Mas ao mesmo tempo é uma cena de decupagem absolutamente estranha, com cortes rápidos, com uma certa excitação, com focos curtos, com olhares angulados por cima dos olhos, etc, que nos causam um certo incômodo, que nos causam uma sensação de deslocamento, ou seja, que há algo que se busca que está além do jogo de mahjong, um certo desconforto. Esse deslocamento – ou incômodo, ou mal estar – é produzido a partir exclusivamente dos recursos do campo estrito do cinematográfico. Isto é, as questões que Desejo e Perigo coloca que me interessam em particular é a sua maestria em utilizar as convenções desgastadas de um determinado “gênero” (de um tipo de cinema, de uma abordagem) para desconstruí-las, e como essa desconstrução é feita no campo estrito da mise-en-scene, do cinematográfico.

Esse incômodo causado pela forma ambígua como Ang Lee trata as convenções do gênero é multiplicado quando pensamos em um outro elemento: o papel da representação. A protagonista do filme é uma mulher que representa um papel, e o tempo todo ficamos nos perguntando até que ponto ela está interpretando para si mesma. Ao longo do filme, percebemos que naturalmente essa mulher “se aprimora como atriz”. Há uma cena em uma espécie de teatro amador em que essa mulher tem o seu primeiro grande desafio, e a partir dali a trupe de revolucionários aplica os métodos de representação na concretude de sua ação política. A representação aqui se confunde com a realidade, mas nem é isso o que digo. O que quero apontar é que o espectador o tempo todo acompanha essa mulher “se aprimorando como atriz”. Ou seja, é um filme que torna o espectador consciente de que tudo é um processo de representação. Em última instância, o próprio filme. Quando no café, ela passa uma ponta de perfume embaixo de sua orelha e bebe uma xícara de café, estamos pouco interessados nessas ações, e sim em como ela representa essas ações para a câmara. E isso é próprio e estrito do campo cinematográfico.

À medida que o filme passa, não sabemos até que ponto essa mulher representa, até que ponto ela simula para ela mesma. O filme dura 170 minutos, cheio de informações, mas não sabemos muito dos sentimentos dessa mulher e desse homem, apenas que ela precisa aprimorar seus ardis para se aproximar dele. Ou seja, tudo em Desejo e Perigo está no campo das aparências, está no campo das superfícies. Essa mulher precisa esconder seus verdadeiros sentimentos, jogando com as aparências. Esse homem, apesar de estar no campo oposto dessa mulher, também. E Ang Lee, também. Ou seja, no final, essa mulher permanece opaca para o espectador. Essa opacidade, além dos argumentos que já trouxemos, está também relacionada à própria natureza do cinema oriental. O jogo de meios-olhares, a explosão do corpo apenas no momento do sexo, é absolutamente oriental, e inunda de ambigüidades a extraordinária performance da dupla de protagonistas.

Algumas pessoas podem achar estranho esse Desejo e Perigo (uma piada seria dizer que se parece com um filme do Lou Ye) vindo do mesmo diretor de O Banquete de Casamento, ou ainda (para não voltar tão atrás) Brokeback Mountain ou O Tigre e o Dragão. Mas é preciso pensar além, vendo em retrospectiva a coerência e a singeleza da filmografia de Ang Lee, no sentido de repensar as convenções do cinema de gênero por dentro das convenções desse próprio cinema, através de um cinema sofisticado. Além disso, pensando as possíveis pontes entre o Ocidente e o Oriente, problematizando as dicotomias e essas construções, e não meramente aproximando-os (tornando-os o mesmo) como parte de um jogo político (por exemplo, o cinema do Yimou).

Desejo e Perigo é um filme estranho, que provoca um incômodo que fica após a projeção.

Comentários

Ricardo Schott disse…
Marcelo Ikeda, tudo bem? Quem escreve aqui é o Ricardo Schott. Estou fazendo a divulgação entre blogs e sites da nova revista SET, que vai para as bancas dia 5 com nova equipe. Queria te enviar um release e a foto da capa da edição. Como faço? Meu e-mail é rschott2004@gmail.com. Se puder, entre em contato! Abç

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