Slumdog Millionaire

Quem quer ser um milionário?
de Danny Boyle
* ½

Alguns apontamentos sobre o “fenômeno midiático do cinema globalizado” que fogem do meramente ideológico


1. Lamento desapontá-los mas não achei Slumdog Millionaire um desastre e não pretendo fazer demagogia ideológica.

2. É incrível como Milionário é (na sua “camada 1”) uma cópia deslavada de Cidade de Deus (no meio do filme há ainda um plano tirado de Redentor, de Cláudio Torres), especialmente na câmera e na fotografia, mas não só isso. Por um lado, há um olhar físico sobre os meandros das favelas como uma montanha russa, que nos dá arrepios mas que acionam nossa adrenalina, espelhados por meio de uma fotografia hiperrealista – contrastada, saturada, puxando pelo grão – e com abuso de movimentos de chicote, com uma steadicam como se fosse de um pseudo-documentário, e com alguns recursos do videoclipe, especialmente na abundância das sequências de montagem, como a velocidade ritmada, um abuso dos filtros de cor e principalmente dos enquadramentos em diagonal, propositadamente “tortos”. Há inclusive um plano de perseguição dentro da favela com câmera baixa tão chupada de Cidade de Deus, que chega a aparecer uma galinha correndo entre os meninos (o que para mim se tornaria uma referência explícita se não fossem as entrevistas do Danny Boyle negando qualquer “inspiração” no filme brasileiro.).

3. Mas o que surpreende em Milionário é essa enorme ânsia em jogar na cara (nas retinas) dos espectadores o maior número de informações visuais possíveis para contar a mesma história de sempre, é essa incontrolável necessidade de falar (jogar imagens) pelos cotovelos, esse excesso fracamente juvenil mas que ao mesmo tempo preenche o filme com uma certa vontade de cinema. Evidentemente um cinema que não me interessa em particular (quem lê esse blog e acompanha minhas reflexões sobre o movimento, como aqui, sabe do que estou falando…), mas que por outro lado possui uma energia que não deve ser desprezada.

4. Porque, ao contrário de Cidade de Deus, Milionário não se utiliza do paradoxo de combinar o artifício do espetáculo com o choque do instante da imitação do estilo do documentário para retratar um cotidiano, e sim para compor um conto de fadas. É certo que, assim como o brasileiro, há uma certa idéia de se falar de uma Índia com um contorno realista (as favelas, a exploração infantil, as guerras de religiões, a máfia local), mas que sempre se transfigura, pois não se pretende ser um filme de denúncia.

5. E aqui surge o ponto que mais me intessa no filme: a forma como Danny Boyle retratou o game show de perguntas e respostas, porque essa “camada 2” é o ponto-chave do filme.

6. Me explico um pouco antes: a “hipersaturação” de imagens (de cortes, de cores, de movimentos de câmera) é acompanhada por uma “hipersaturação” narrativa, com o desejo quase esquizofrênico de criar novidades e suspense o tempo todo para o espectador (isso me lembra dos textos teóricos sobre o espectador moderno, entediado diante do excesso de informações que ele nunca conseguirá apreender…). Milionário é construído em três camadas narrativas que se interpolam: boa parte do filme se passa durante um interrogatório em que Jamal, o favelado ”menino do chá” que está a uma pergunta de se tornar um milionário num quiz show televisivo, é acusado de trapacear, pois só assim saberia as respostas. Ele prova ao policial que sabia de fato as respostas, porque todas se relacionavam com a sua experiência de vida (é como se o filme defendesse uma tese estranha que “conhecimento” [ou ainda, o sucesso] está relacionado à experiência de vida e ao destino [“está escrito”] e não à educação formal [já fiz uma crítica a esse pensamento em Dois Filhos de Francisco, como uma apologia ao trabalho infantil e à precarização da educação, mas sobre esse aspecto interessante não vou me alongar aqui, pois já falei sobre isso acolá num texto chamado ELOGIO AO ATRASO], e com isso ele narra o seu passado, construído estrategicamente para dar conta de um triângulo amoroso em que Jamal e seu irmão disputam o amor de uma mulher. Dessa forma, Milionário tem três camadas narrativas: a “camada 1” (o passado de Jamal, que revela como ele acertou as perguntas e contrói o triângulo amoroso, i.e a parte “feminina” da trama); a “camada 2” (o programa de perguntas e respostas); e a “camada 3” (o interrogatório de Jamal, na delegacia de polícia). Na verdade, o sucesso (de público) de Milionário se explica fundamentalmente pela forma orgânica como Boyle conseguiu amarrar essas três camadas narrativas, de maneira ágil e hábil, e, claro, a “perfumaria imagética”, que inevitavelmente seduz o espectador.

7. Volto ao jogo de perguntas de respostas, ao quiz “Quem quer ser um milionário?”, que insere ao filme claramente um aspecto metalinguístico inegável. É muito curiosa a cartela inicial do filme, como uma pergunta lançada ao espectador, que será respondida no final do filme (i.e o espectador, a partir da sua experiência sensível pôde acertar a pergunta, assim como Jamal). E mais curiosa ainda é sua resposta: Jamal virou um milionário porque “assim estava escrito” (como num título em português de um filme do Minelli). Claro, “estava escrito” antes de tudo no roteiro, de modo que, desde o começo, o espectador já sabia que a resposta era a letra “d”. O quiz show de Milionário é decerto o “filme dentro do filme”, as câmeras de cinema filmando as câmeras de TV, ou ainda, o espetáculo dentro do espetáculo. Bombaim parando para ver o último capítulo como o Rio de Janeiro pára para ver o pobretão se tornando o novo milionário no Big Brother Brasil.

8. E diante do quiz show, ou ainda, do espetáculo dentro do espetáculo, qual a forma que Boyle escolheu para filmar Jamal, o “menino do chá”, o surpreendente milionário? Confiante? Amedrontado? Nem uma coisa nem outra: Jamal muitas vezes está alheio ao programa, mostrando uma indiferença. Sua postura corporal é diferente de toda a agitação frenética do filme: ela denota uma melancolia serena. A postura de Jamal oferece mais que um contraponto à hiperexcitação de todo o filme: ela é de um distanciamento do espetáculo. Jamal se utiliza do espetáculo para transcendê-lo: ele é meramente um joguete para achar “seu grande amor”. Nisso é notável a cena do telefone, como forma de “achar uma resposta que vá além do jogo”.

9. De outro lado, dois irmãos lutam por uma mulher (i.e em “termos mercadológicos”, as mulheres também podem se interessar pelo filme, porque no meio de toda a correria e o suspense, há o entrecho amoroso…). Na verdade, dizendo de outra forma, eles lutam por um futuro. Quando a mãe dos dois irmãos morre, há uma cena-síntese, em que os dois irmãos se protegem na chuva dentro de um precário túnel. Enquanto Salim olha para dentro do túnel e se lembra da morte da mãe e do fogo, Jamal olha para fora (há a água da chuva, não fogo) e encontra Latika. Todo o diferente percurso dos dois irmãos assinala esse abismo: enquanto Salim tenta ser forte para sobreviver, convivendo com essa raiva (esse passado), Jamal tenta preservar sua inocência, buscando o amor (esse futuro). Raiva versus amor. Milionário tem uma solução indiscutivelmente ingênua, mas aqui me interessa mais observar as diferenças entre Cidade de Deus e até mesmo Tropa de Elite. É como se os filmes brasileiros se interessassem por Salim, e não por Jamal (é só pensar nas possíveis repercussões narrativas quando Salim mata o grande chefão). Ou ainda, a conclusão de Milionário (o espetéculo musical) é antípoda do desfecho fascista de Tropa de Elite (o tiro do agora monstro, ver aqui): no “Indian dream” não há lugar para o ressentimento.

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