Amantes Constantes

De Phillipe Garrel

Unibanco Arteplex 2  qua 22 20:30

**** (obra-prima)

 

Há bastante coisa para se dizer sobre Amantes Constantes. Devo começar com um tema em torno, que não tem a ver com o filme em si, mas que faz toda a diferença: a possibilidade de o filme ser visto. Parabéns à Imovision e ao Unibanco Arteplex (no Rio), ou seja, ao Jean-Thomas e ao Adhemar, pela coragem em lançar um filme preto-e-branco de três horas de duração de um diretor que tem o primeiro filme lançado comercialmente no Brasil. É claro que o prêmio em Veneza foi decisivo, mas quantos filmes mesmo premiados já ficaram de fora da programação? Segundo, é bom registrar que, desta vez, a crítica não foi insensível ao esforço dos distribuidores. Especialmente (quem diria...) O Globo, que reforçou a sua equipe de críticos mesclando experiência e juventude. O Ruy (aliás uma pessoa que eu  - por motivos pessoais - não tenho o menor apreço), indiscutivelmente foi um reforço de peso para o jornal, fazendo um texto exato, enxuto e que permitiu (quem sabe...) dar uma espécie de fôlego ao filme.

 

Segundo, é preciso se apontar para o absurdo que é termos pela primeira vez um filme de Garrel estreando comercialmente no Brasil. Pois Amantes Constantes é simplesmente seu 27º filme!!! Isso mesmo! E mesmo recebendo honrarias em festivais do peso de Cannes e Veneza, apenas agora temos a oportunidade de ver um filme de Garrel nos cinemas.

 

Mas o fato é que finalmente o temos, então vamos ao que importa: o filme.

 

*  *  *

 

Amantes Constantes é em primeiro lugar uma obra-prima pelo que ele não é. Aparentemente apresentado como um filme “sobre os acontecimentos em Paris de maio de 1968”, Amantes Constantes não quer ser um estudo sociológico ou mesmo um filme político sobre a suposta revolução. Antes, ele busca a possibilidade de um contato mais íntimo e humano com personagens desse ambiente histórico. Com isso, a História (com H maiúsculo) não se torna pano de fundo meramente ilustrativo para os dramas amorosos ou de descoberta dos protagonistas do filme, mas se fundem com ele, tornando a relação “História-história” muito mais orgânica. Pensamos então em tudo o que aqui reclamei de filmes como O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias ou mesmo do interessante romeno Como Festejei o Fim do Mundo. No filme de Garrel, não há esse esquematismo: a geografia física, o tempo (narrativo e dramatúrgico) e a mise-en-scène se tornam um só. Isso permite que o espectador viva com os personagens de uma maneira mais rica, ou ainda, que estes não se tornem meros “símbolos” nem de um tempo histórico nem de uma “tese” do realizador. Nesse sentido, esse filme de Garrel, na forma como vê a narrativa de forma muito diferente dos modelos de causa-efeito e das “relações biunívocas entre História-história”, se aproxima da visão de cinema de Jia Zhang-Ke quando aborda os efeitos da abertura econômica chinesa na vida de pessoas comuns. Ele se debruça sobre o filme sem o ranço psicológico da narrativa clássica: o espectador antes observa do que julga os personagens. Por isso o tempo se torna matéria-prima do filme.

 

Mas com isso Amantes Constantes não deixa de ser um olhar muito atento sobre o movimento estudantil de maio de 68, mas ele o é de uma outra maneira, diferente da que o cinema convencional nos apresenta. Ou ainda, do que o dito “cinema de arte” nos mostra. Ou seja, ele não é nem Olga nem Os Sonhadores. Não tem o desejo épico e didático do mainstream nem os cacoetes de estilo e os efeitos-de-choque do “cinema de autor”. Garrel faz um filme de interstícios, repleto de entremeios, como se o que interessasse na paisagem não fossem os marcos de construção mas a brisa que toca o rosto dos personagens. Rigoroso, com um leve toque documental mas sempre ficcional, como reforçam a extraordinária fotografia em preto-e-branco de William Lubtchansky, Amantes Constantes é um filme de maturidade, em que os efeitos de estilo se ocultam por trás de uma suposta discrição dos elementos de linguagem, mas que no fundo fazem parte de ardilosa construção. Repleto de interiores, com uma presença claustrofóbica que aprisiona os personagens dentro dos limites do enquadramento, mas com uma suavidade (no tempo, no corte, no tom de voz dos personagens), que aponta para uma poesia implícita que tanto nos impressiona ao longo do filme, Amantes Constantes passa como se fosse uma crônica de um tempo perdido mas vivido, de uma geração que se construiu de uma certa forma, ainda que não exatamente do jeito que se previa. Ou ainda, é um filme que nos passa, ao mesmo tempo, uma suavidade doce e madura e um rigor austero e doloroso; um cântico de esperança e de lamentação. Pois se Amantes Constantes é de um lado um filme claustrofóbico sobre uma geração que não fez a revolução, é de outro um filme sobre a possibilidade de amar e de criar mesmo dentro desse cenário de espera. É um filme sobre o amor e um filme sobre a criação. É um filme também sobre esse “tempo de espera”, sobre esse interstício entre o sonho e a realidade, entre o ontem e o hoje, entre o sempre e o nunca, esse tempo que pode durar um segundo ou um século, que pode ser vazio ou eterno. Não é à toa que vez ou outra vejamos esse estranho protagonista dormindo, tendo sonhos pontuados com íris que nos lembram do próprio processo cinematográfico. E no fim, nos vem a morte, que pode ser o encontro com a eternidade ou o fim de tudo, dependendo de como se vê, ou ainda, essa morte terrivelmente real e brilhantemente poética, quase como um acalanto que abraça esse personagem. Tendo como base o impacto do movimento de 68 em um grupo de indivíduos (pois a História é feita sempre por pessoas), de sexos e formações diferentes mas com interesses em comum, Amantes Constantes é um filme de encontros e separações, e, ao final, nos sugere, através das possibilidades do cinema, como os movimentos da vida, da alma, do espírito e das coisas passam e ficam. Obra-prima, filme de um veterano diretor francês que se debruça sobre diversos aspectos do top do cinema contemporâneo, é um filme cuja singeleza, delicadeza e maturidade nos alimentam e nos fecundam, como aspirantes a artistas e como aspirantes a Homens. Ou seja, tudo o que um filme pode nos ser.

 

Comentários

leonardo marona disse…
ik,

vi esse filme semana passada. como bom preconceituoso, entrei no cinema pensando que tinha pouquissimas chances, e meio sonolento, como que anunciando a derrota que já despontava no horizonte, através de um senhor gordo e falante com um enorme saco de pipocas , bem na minha frente na sala.

então pensei, antes do início: "esse gordo com pipoca, um filme de mais de 3 horas, preto e branco, com falhas anunciadas na entrada do cinema, poético, francês, esse sono repentino... quais são as minha chances?"

fato é que o filme começou e eu vi a todos, todos nós, toda a falácia da arte , toda a linda falácia em que somos apreendidos, que desejamos de morte, que precisamos compartilhar, todas as lascas de pão das nossas almas, da minha, da tua, da dos gemeos, do cris, essa ânsia envergonhada, essa vontade de mais, esse medo do mais, essa negação do menos, estava tudo ali, logo na primeira cena. e depois os interstícios, cada um uma pena, cada um uma morte enternecida... e eu já não tinha sono. e eu lambia minhas próprias lágrimas. e eu queria morrer, porque tive a certeza subita de que estava vivo, de que estamos...

belo texto.

leo

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