Eu Me Lembro

Eu Me Lembro
de Edgard Navarro
Estação Paissandu, qui 2 nov 21hs
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Eu já tinha visto Eu Me Lembro na primeira exibição pública do filme, no último Festival de Brasília, há quase um ano. Mas após aquela exibição, era impossível dizer o que eu tinha achado do filme, simplesmente porque aquela foi a sessão de cinema mais emocionante que já presenciei. Então era preciso vê-lo mais uma vez, com um pouco mais de distância, para confirmar as virtudes do filme. E a revisão aumentou meu entusiasmo pelo filme. Primeiro, porque a emoção continuou, e o filme é de fato baseado na emoção. E segundo, porque a parte da artesania do filme, que não tinha me convencido muito da primeira vez, agora se revelou mais sólida, especialmente pela montagem, que combina a estrutura fragmentada do filme de forma muito coerente, e pela câmera sutil, que combina carrinhos e até algumas gruas com uma ternura muito própria ao tema.

Mas quero ir direto ao assunto: o que mais me espantou nessa revisão de Eu Me Lembro é eu não ter percebido pela primeira vez que se trata de uma espécie de "cosmogonia autobiográfica", ou seja, de um filme cuja essência é um homem que se descobre enquanto artista, isto é, é como se o filme fosse um "auto-retrato do artista durante a gestação". Isso está claro no final, que eu não tinha entendido muito bem. O filme acaba exatamente quando Guiga descobre-se artista. Ele não quer viver com o grupo de hippies, ele pega o outro caminho, e se separa. Come uns cogumelos para enfrentar os seus demônios, e ali, debaixo de uma árvore, diz que vai comprar uma câmera super-8 (bitola que consagrou Navarro). O efeito do cogumelo (i.e de enfrentar seus demônios) é o de reavaliar sua própria vida, sua própria família, sua própria história. Ou seja, em última instância, é ali que nasce a gênese do próprio filme que estamos vendo. O céu estrelado, uma estrela cadente, um pedido: mais elementos que reforçam essa cosmogonia mágica. Guiga abre e tampa os ouvidos, exatamente da mesma forma como fazia quando criança, na primeira cena do filme. Não é à toa que o último plano do filme mostra Navarro dirigindo a própria cena, indicando o caminho para o operador da grua. Eu Me Lembro acaba com muitos paralelos a Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, mas enquanto este assume a metalinguagem pessoal com um tom crítico (entre o doc e a ficção) para Navarro, o paralelo envolve uma "mitopoética", ou uma "autocosmogonia", como disse antes. É porque Navarro vê todo esse processo hoje, ele reavalia um passado, como a voz-over faz questão de enfatizar todo o filme (e a voz-over é claro do próprio Navarro). Daí que Eu Me Lembro é acima de tudo um libelo pela opção de vida do artista, e de sua gênese enquanto tal. Opções que passam por um contexto pessoal, familiar, social e geográfico.

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A parte da infância de Eu Me Lembro é fascinante porque a criança Guiga é um mero observador dessa rotina da família. Com isso, o filme trabalha dois pontos, que são fundamentais para fundamentar essa "gênese do perceber-se artista". Primeiro, é a passividade desse observador. Guiga só observa, e raramente tem voz. Enquanto observa, ele reflete, ele tem um distanciamento crítico desse universo, apesar de ter uma ligação quase umbilical com ele. Síntese dessa cena é quando vê a criada com seu irmão, e depois corre para os braços da mãe, dizendo que tem medo. Ele tem medo porque Deus vê tudo, e vê os nossos pecados. Mas Guiga é uma espécie de semi-Deus porque observa quase tudo, circula pelos vãos das paredes praticamente desapercebido. Essa espécie de semi-Deus, que é o próprio cineasta dentro do mundo da sua narrativa. E segundo, o que vem do primeiro, é que esse observador trabalha o tempo todo com a questão do olhar.

Guiga perambula por essa casa com esse olhar íntimo e crítico, sem ter voz. Ele só escuta e ouve. Não reage, não interage, não tem vez. A única vez que ele reage é quando enfrenta o pai, e o acusa de ter matado sua mãe. A relação de Guiga com o pai vai ser trabalhada ao longo de todo o filme, como se para ele fosse imoportante libertar-se dessa influência repressora. Por isso, quando Guiga enfrenta o pai (mas sem rancor ou desejo de vingança porque logo após eles fazem as pazes), é como se Guiga entrasse ali para a fase adulta.

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Eu Me Lembro é diretamente chupado do cinema felliniano, desde a referência básica a Amarcord (já pelo título, já que Amarcord significa "Eu me recordo"), até o próprio 8 1/2 (a roda ao final, o filme sendo feito). O curioso é pensarmos que o primeiro longa de Navarro é mais filiado ao lado da emoção do que da subversão. Ou seja, é um filme que fala de uma memória pessoal, de uma certa nostalgia, mais do que o espírito crítico, anárquico, debochado, e quase próximo ao cinema marginal, em torno do qual o nome de Navarro sempre foi associado.

Por fim, ficam as sábias palavras de Walter Salles, em seu artigo para O Globo, em que diz que Eu Me Lembro traz um sopro de renovação ao cinema brasileiro. Ele lamenta que Navarro só tenha conseguido fazer seu primeiro longa aos 56 anos, enquanto, graças ao apoio do INCAA argentino, Pablo Trapero vai lançar seu quarto longa com 30 e poucos anos. Certíssimo, mas por outro lado, não podemos esquecer o extraordinário discurso de Navarro no palco de Brasília, momentos antes da primeira exibição de seu tão esperado filme: mais que isso, temos que lembrar que ele conseguiu fazê-lo, que é um dos primeiros filmes totalmente baianos em muito tempo, que ele venceu a luta contra os direitos autorais das músicas e que a ANCINE, mal ou bem, deu R$300 mil, que foram fundamentais para o filme pudesse ficar pronto. E, ainda, que existe toda uma geração, todo um cinema brasileiro, que sobe ali ao palco com Navarro para apresentar esse filme. Se não é um filme que aponte para novos caminhos em termos de linguagem, ou que não apresenta um teor tão subversivo quanto os trabalhos anteriores de Navarro, isso não nos impede de aplaudir todo um sentimento de cinema e de mundo que indiscutivelmente se espalham pelos fotogramas desse simples e singelo Eu Me Lembro.

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