Colhendo frutos em terra seca

 

Flanders

De Bruno Dumont

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Luzes na escuridão

De Aki Kaurismaki

***

 

Colhendo frutos em terra seca

 

Vi na televisão que o (ex)meia-esquerda da seleção brasileira Zé Roberto acabou de publicar um livro com inspiração gospel, com o título de “colhendo frutos em terra seca”. Não li e não gostei, mas o título ficou na minha cabeça, entre algumas imagens de alguns filmes do Paradjanov que coletei na internet e essa maratona (ainda que muito reduzida, pelo menos para mim) do Festival do Rio. Que a terra é seca ninguém duvida, mas como ainda se pode seguir caminhando pelo deserto das coisas? E como o cinema de hoje pode traduzir, num sentido de linguagem, essa idéia? Idéias férteis, especialmente para mim, já que o tema em muito me interessa.

 

*  *  *

Essa é a idéia do cinema do talentoso Bruno Dumont, desde sua estréia na direção com o impressionante A Vida de Jesus, mostrar como o lado perverso e monstruoso da identidade humana convive com uma inocência e um senso lúdico. Seu enorme senso plástico (todos os seus quatro filmes foram filmados em cinemascope) e um raro sentido de apreensão de um tempo e uma geografia física o tornaram um dos grandes realizadores do cinema contemporâneo. Mas 29 palms já nos deixava com uma certa dúvida. O belíssimo filme jogava o roteiro pela janela para fazer um retrato íntimo de um casal no deserto americano que dialoga com os melhores momentos de Gerry ou de The Brown Bunny. Mas acontece que no fim há uma “cena-choque” que vem no sentido de desconstruir todo o discurso de doçura do filme de uma forma propositadamente abrupta e cruel.

 

Flanders aprofunda o “cinema-de-choque” de 29 palms mas preocupa exatamente porque o sensível cinema de Dumont acaba se revelando esquemático. O mote do filme poderia nos lembrar de Kippur, de Amos Gitai, descrevendo com minúcia realista o absurdo da guerra, só que enquanto Gitai utiliza uma estética descritiva no sentido de ter um distanciamento (não há personagens, não há identificação), Dumont cria falsos conflitos (o negro e o líder do pelotão, etc.) e dá tintas psicológicas (o estupro) para jogar com os arquétipos do cinema narrativo. A montagem contribui para o esquematismo porque provoca uma montagem paralela do “lado bom” (o campo) e o “lado mau” (a guerra) da vida, embora mesmo no campo haja uma tendência de repressão da liberdade do indivíduo (a condenação ao amor livre) pelas estruturas conservadoras da sociedade.

 

O final parece apontar para um pacifismo, para uma possibilidade de superação do absurdo do vida a partir do amor, mas o cinema de Dumont assim o faz com uma armadilha um tanto simplória de roteiro, que no fundo é o clichê de todos os filmes de guerra: a possibilidade de sobreviver ao holocausto (e de poder voltar a amar) vem do fato de se livrar da culpa por não ter conseguido ser mais apto a salvar amigos da inevitável morte.

 

*  *  *

 

A constatação de que vivemos numa “terra seca” é a primeira que tiramos de Luzes da Escuridão, o novo filme de Aki Kaurismaki, que dá continuidade à sua estética de O Homem Sem Passado. O filme é de uma tristeza ímpar, porque o mundo simplesmente não responde às tentativas de um humilde guarda de escapar da solidão. Ele procura fazer a sua parte (cumprimenta as pessoas, dedica-se ao seu trabalho), mas é muito pouco, porque simplesmente ele não é “um cara legal”. O mundo é triste, escuro, sem muito movimento ou emoção, sem improviso, sem surpresas, sem sentido. Ou seja, é como se fosse um filme da Casulo Filmes.

 

Desde Douglas Sirk, eu nunca vi um cineasta que usasse de forma tão cristalina a luz e o décor para criar uma dramaturgia. O que torna Luzes na Escuridão um deleite infindável para o cinéfilo-aspirante-a-cineasta é a sua enorme consciência de linguagem, em que todos os elementos possíveis de linguagem (a luz, o quadro, a decupagem, o décor, a atuação, a montagem, o som, etc.) são extremamente pensados sem que isso sufoque o filme ou o impeça de ter uma enorme proposta de cinema e de mundo costurando tudo, ou seja, sem que fique posado ou com tiques que a nada levam. O cinema de Kaurismaki é de extrema economia, e quando digo economia é tanto no sentido de usar o mínimo para o máximo efeito expressivo quanto no sentido da funcionalidade de todos os elementos em cena (ou seja, é preciso, não há espaço para os excessos). O que é fantástico em Luzes na escuridão é a sua consciência de decupagem, como cada plano é funcional no sentido de traduzir “o equilíbrio dessa aridez melancólica” e ao mesmo tempo como tudo funciona de forma orgânica e planejada.

 

Por outro lado, o que nos surpreende é como Kaurismaki tem uma visão de cinema em que uma enorme melancolia, uma enorme consciência da tristeza que é viver nessa terra seca, é exposta a partir de um cinema que usa como base o humor, mas um humor particular, quase implícito, como se fosse uma combinação curiosa, quase perversa, entre Chaplin e Keaton. Por um lado, a ingenuidade quase infantil de Chaplin; por outro, o surrealismo e a não-expressão de Keaton. Daí que ao mesmo tempo que Kaurismaki retrata o tom árido dessa nova vida, ele dá ao filme um lado lírico, que nos faz reavaliar o sentido da aridez, ao invés de simplesmente descrever a miséria da condição humana como o faz Dumont. O guarda de Luzes na Escuridão pode ser ingênuo ou tolo, mas ele acredita na possibilidade de amar de verdade. Talvez seja como Gertrud, de Dreyer.

 

Isso é o que me encanta: como uma visão de cinema e de mundo se entrelaçam se forma única, coerente, cristalina. Para Kaurismaki, não resta dúvida de que a terra é seca, e de que a vida é uma peregrinação miserável, mas por trás de seu cinema frio e melancólico, há uma paixão no olhar para cada um de seus personagens (o mesmo olhar triste no guarda, na femme fatale e no bandido rico), e há um sentimento profundo, bonito, íntimo de que pelo menos é preciso acreditar que exista uma esperança.

 

As enormes diferenças entre o último plano de Flanders e Luzes na escuridão – dois planos próximos de contato de corpo entre um homem e uma mulher, apontando para uma aproximação sentimental – mostram uma visão oposta de cinema e de mundo. No primeiro, livra-se da culpa; no segundo, temos a certeza de que a vida pode nos tirar tudo menos a possibilidade do afeto.

 

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