Carta

Tenho trocado várias cartas com o Rosemberg, grande cineasta que tem dado um apoio fundamental a meus pobres trabalhos. Segue a última que enviei ontem, que achei por bem colocar aqui no blog. Quis colocar pq primeiro reflete bem meu estado de espírito atualmente; segundo, porque tem uma reflexão bastante interessante sobre meus filmes e sobre cinema, motivo desse blog.

* * *

Oi Rosemberg,

Sua carta me chega num momento de grande reflexão.
A correria nas últimas semanas foi muito, muito grande. O desgaste – físico, emocional – está sendo muito grande. Além do meu trabalho, que me tira muitas das minhas energias (você deve imaginar), vim dando aulas às segundas, terças, quintas e sábados. Esse Festival Universitário foi muito cansativo. Passaram muitas coisas minhas, o que é muito legal, então por isso quis ver o máximo de filmes, participar dos eventos, essas coisas. Teve finalmente a primeira exibição pública de O POSTO, um projeto que é muito sofrido para mim, um projeto que eu sempre tive uma relação de compromisso que transcende todos os meus vídeos, com quem tenho uma relação muito mais lúdica. Teve a primeira exibição do EM CASA, que me consumiu todas as energias. Isso porque foi um sufoco danado pra cópia ficar pronta, porque o Yuri, que me ajudou muito fazendo a parte do som, teve umas dificuldades técnicas, então praticamente fiquei três noites sem dormir para poder finalizar esse trabalho a tempo de ser exibido. Tive que tirar meio na marra dez dias de férias, senão eu não ia agüentar, mas já estou de volta ao batente, porque a vida tem que continuar, não é mesmo?

Você me pergunta sobre a exibição de O POSTO. Difícil, muito difícil falar. Em geral, fiquei muito contente: as pessoas gostaram, vieram comentar comigo, senti que é um trabalho que tem um equilíbrio entre comunicação e expressão, que sempre foi um norte, uma meta para mim nesse trabalho. Vendo a reação das pessoas ao POSTO, agora sinto que posso ter a ousadia de querer aspirar a me tornar um cineasta um dia. Isso me deixou muito orgulhoso e confiante!

Mas por outro lado, vêm os dias seguintes, e sua carta me pega num momento de grande melancolia, ainda fruto desse cansaço. A gente fica se perguntando, depois de tudo, “pra quê isso?”. As pessoas até gostaram de O POSTO, mas estão muito longe de saber o que está em jogo com esse trabalho, o que realmente isso representa. Eu também fiquei muito triste porque grandes amigos, que sabiam o quanto esse momento significava para mim, sequer apareceram para ver o filme, e olha que já passou três vezes. As pessoas não tiveram essa generosidade, e senti a falta de algumas pessoas importantes para mim. Mas também não dá para esperar muito das pessoas, não é? É claro que esse não é o seu caso, sua presença me deixou muito honrado. Aliás, agradeço muito todos os elogios e toda a força que você está dando para meu trabalho, você não sabe o quanto isso é importante. Ninguém nunca deu valor nenhum a esses vídeos que eu faço. Nenhum mesmo. E eu só continuei fazendo porque é uma necessidade muito grande que eu tenho, então eu continuo fazendo, porque é a forma que eu encontro para me expressar, para viver, para continuar vivendo. Geralmente esses vídeos são motivo de chacota. Foi assim com a exibição do AUTO-RETRATO na Mostra do Filme Livre e no Festival Universitário. Mas é assim mesmo, não dá pra esperar que seja diferente. A gente que quer fazer um trabalho que seja realmente diferente do que está aí, tem que estar pronto para isso, não é? Vejo o seu exemplo, uma pessoa super respeitada e consagrada, mas que não consegue mais filmar, mas mesmo assim tá na luta, fazendo seus vídeos, escrevendo. É isso, a gente não pode deixar esmorecer. Mas eu que tenho uma personalidade mais franzina, sinto mais isso. É incrível como as pessoas reagem contra o nosso direito de ser livre, parece que isso ofende muito as pessoas!! Às vezes, sinto vontade de gritar “EU TENHO O DIREITO DE TENTAR SER LIVRE, PELO MENOS DE TENTAAAR!!!”, mas depois logo percebo que seria uma bobagem. O desafio é permanecermos serenos, equilibrados...

Então que me senti muito solitário depois de tudo. Depois de toda a alegria com a recepção do filme, com o alívio desse trabalho ter chegado ao seu esperado fim, veio a reflexão. Mas o cinema – estou começando a perceber – é isso mesmo. O cineasta é muito solitário. Tem toda a equipe, aquele alvoroço pra tudo ficar pronto, etc, mas depois o cineasta fica sozinho, e só lhe resta recomeçar, partir pro próximo filme. É como se fosse uma festa: todos vêm, participam, te dão os parabéns, mas no dia seguinte, você tem que limpar a casa sozinho, sempre sozinho. Assim é o rumo das coisas, não dá pra mudar isso. Essa tarefa de limpar a casa depois da festa é dolorosa mas é necessária, é muito necessária, porque ela é adubo pro que vem depois, te dá a humildade de saber que o cinema não é só a festa, e que se tem que trabalhar duro, muito duro, sem se iludir com as coisas. Aliás, já falei muito disso no meu AUTO-RETRATO, não é verdade? Bom, mas é isso: resta partir para o próximo filme!

Até porque amanhã é um novo dia, não é?
Espero que seja.

Um abraço,
e mais uma vez obrigado,
XXX.

Comentários

Anônimo disse…
gostei muito do texto. o que você diz tem uma maturidade que poucos reconhecem e se emocionam com. eu certamente me emociono e me arrepio com a sensação da vida ser inevitável e o suicídio intelectual e emocional ser inaceitável. nós temos que resistir, eu tenho que resistir. mas confesso que fico chateado com a parte do texto em que você diz que ninguém deu valor nenhum a esses vídeos. eu achava que eu e o meu irmão e o ivo (em outro nível) demos muito valor, respeito e incentivo ao seu trabalho. eu não sei o que você tem, mas você consegue afastar as pessoas de você mesmo. você transforma os seus amigos em inimigos. eu poderia me concentrar em coisas que me decepcionam nas pessoas, mas eu prefiro ver o que elas têm para me oferecer de positivo, pois todas as pessoas têm limites inclusive eu e você. se você quer tirar esse comentário do blog não tem problema, mas eu estou falando sinceramente e diretamente o que eu penso, pois é dessa forma que eu me trato com os amigos. antes de me decepcionar com os amigos eu prefiro entender os limites que cada um tem e respeitar isso e o resto é viver nessa merda de país e nessa merda de tempo em que nós vivemos.
um grande abraço
ricardo pretti
Anônimo disse…
Essa carta é emocionante! Pegou na jugular! Conheço o Rosemberg através de um amigo dele, Moacy Cirne, que é daqui do Rio Grande do Norte: Natal. Aliás, não conheço o Rosemberg, mas apenas alguns de seus curtas, que o Moacy trouxe em sua última viagem a Natal - maravilhosos: uma verdadeira guerrilha de imagens, em imagens, contra-imagens. Continue. Força sempre!
Cinecasulófilo disse…
Ricardo,
li seu comentário com uma certa surpresa, embora eu já o esperava. Gostaria de comentar algumas coisas, mas nesse momento de cansaço, creio que não vale, ainda mais neste espaço. Só queria dizer que nunca, nunca apaguei ou apagarei qualquer comentário desse blog. Para mim isso é uma questão de princípio. Eu apago às vezes coisas que eu mesmo escrevo (alguns posts) porque eu me arrependo, mas isso é uma questão de grande dúvida comigo mesmo. Ah e qdo falo em "ninguém", claro que é um exagero melodramático. Tem vces, claro, que sempre me incentivaram, tem outras pessoas, um alemão, o Philipp, que levou meus trabalhos para outros países (não sei se vces viram a cartela final do EM CASA), tem gente que gostou de um ou outro trabalho meu. Ninguém é forma de dizer. Assim como vces podem tranquilamente dizer q ninguem gosta do trabalho de vces.
Cinecasulófilo disse…
Marcos, tbem conheço o Cirne lá da UFF. Vi que no seu blog tem um pequeno comentário sobre os videos do Rosemberg. Na Mostra do Filme Livre, que teve uma retrospectiva do Rosemberg, eu escrevi textos para o catálogo que falam desses vídeos. Vou te mandar depois por e-mail.
Anônimo disse…
Meu caro: Gostei de conhecer o seu blogue, claro. E gostei muito de sua carta ao Rô. É preciso criar, é preciso ousar, é preciso investir nos sentimentos. Mas às vezes a situação fica bastante complicada para todos nós. Haja vista o belo 'Um filme falado', que também foi motivo de cuidadosa análise de sua parte. Voltarei, voltarei. Um abraço.

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