O Retorno de Vassily Bortnikov
O Retorno de Vassily Bortnikov
Vsevolod Pudovkin
1953
Nosso desconhecimento (bom, pelo menos o meu rs) do cinema soviético ainda é grande. Em geral, giramos em torno de um restrito punhado de diretores e filmes que se destacaram nos festivais internacionais do Ocidente. O acesso a um filme como O Retorno de Vassily Bortnikov (1953) nos permite abrir então mais perspectivas sobre o cinema soviético do período.
Inicialmente,
nosso interesse pelo filme surge do fato de ter sido realizado por ninguém
menos que Vsevolod Pudovkin, um dos maiores diretores do cinema russo,
mundialmente conhecido por suas sofisticadas reflexões sobre montagem ainda nos
anos 1920. Acontece que o cinema de Pudovkin ficou mais conhecido por seus
clássicos do período silencioso, como A mãe (1926), O fim de São Petersburgo
(1927) ou Tempestade sobre a Ásia (1927), mas muito menos destaque se oferece à
sua trajetória após os anos 1930, no cinema sonoro. No entanto, Pudovkin
continuou realizando filmes até a década de 1950: O Retorno de Vassily
Bortnikov é justamente o seu último filme.
Sobre
o filme, a princípio, estamos instalados no mais típico cinema de propaganda: o
protagonista é um comandante desaparecido durante a guerra. Ao recobrar os
sentidos e voltar para sua terra natal, nos rincões do interior da Rússia, precisa
enfrentar os percalços e reconstruir sua vida. Ele enfrenta uma dificuldade
dupla: reconstruir a vida conjugal com sua esposa (que havia se casado com
outro homem, uma vez que seu marido fora dado como morto) e recuperar a força
coletiva da comunidade, organizada por meio dos kolkhozes (fazendas coletivas).
Aqui
é preciso fazer um parênteses arriscado, uma vez que não sou especialista nessa
complexa questão. O filme é uma rara oportunidade de nos dar a ver como
funciona um kolkhoz. No entanto, não há como não pensar em um filme como A imagem
que falta (2013), de Rithy Panh (para mais detalhes, ver aqui). Nesse filme, o cambojano explicita os limites da
difícil empreitada de transmitir a traumática experiência de viver em um campo
de trabalhos forçados, como instalado pelo ditador cambojano Pol Pot, em que as
fazendas coletivas na prática eram verdadeiros campos de concentração. As
poucas imagens que sobreviveram desses campos eram produzidas pelo próprio
sistema, mostrando ilhas de prosperidade, enquanto na verdade eram máquinas de
morte. Infelizmente é triste perceber que a experiência socialista esteve longe
de ser um mar de rosas, mas esteve marcada pelas tentações do totalitarismo,
cujas maiores aberrações foram os regimes de Stalin e Pol Pot, que desvirtuaram
o modelo humanista para algo monstruoso.
Ao
ver o filme de Pudovkin, nos remetemos à política de coletivização forçada da
Era Stalin e pensamos o quanto o filme romantiza um processo que foi no fundo
bastante violento, especialmente no interior agrário russo. De que modos um
filme de propaganda, que se oferece a princípio como uma prática social, acaba
se revelando, com o tempo, uma peça de silenciamento e de apagamento das
verdadeiras questões que ali subsistem? – até porque, caso quisesse, Pudovkin certamente
não teria a liberdade de fazer um filme diferente da mensagem moral que se
oferece.
Seria
O Retorno de Vassily Bortnikov uma mera imagem oficial produzida pelo sistema
stalinista ou há algo ali que subsiste por trás das convenções da propaganda?
Ao
mesmo tempo, é preciso cotejar esse filme com a trajetória do realizador, mesmo
no período silencioso. Reconstruir, recomeçar... tomar consciência do mundo....
unir família e trabalho em prol de um processo coletivo... essas questões na
verdade já estão presentes no cinema de Pudovkin desde A mãe e O fim de São
Petersburgo - inclusive o explícito tom moral propagandista já estava
claramente presente em O fim de ..., sem que este (incrivelmente)
comprometesse a liberdade estética da obra.
Não
se trata aqui, é preciso ressaltar, apenas da beleza tecnocrática de uma obra –
a maestria do uso dos elementos de linguagem, os movimentos de câmera, a cor, o
decor, a luz, etc. Ainda que a política de um filme seja sua mise en scène,
como bem afirmaram os jovens turcos da Cahiers, aqui há um elemento de base do
cinema clássico: a jornada do heroi expressa a vocação moral de sua trama, e
vida individual e coletiva vão convergir em torno dos ideais de virtude e
superação, até um fim redentor.
Mas
o que talvez seja interessante nesse filme menor e esquecido desse grande
mestre soviético é justamente o retrato das tensões sociais que se desvelam por
trás do tom de propaganda moral na fazenda coletiva. Quais as camadas de
disputa que se escondem por trás do filme de propaganda? Vejamos.
Um
elemento que achei bastante curioso no filme é o papel das mulheres. Ao mesmo
tempo em que Diana é uma esposa aplicada que recebe ordens do marido, ela
desenvolve sua carreira no trabalho, vai
à capital se qualificar e inclusive sai de casa quando não se entende com o
marido. Sob esse propósito, as mulheres são ativas na condução dos trabalhos da
fazenda: as mulheres não estão a cuidar dos filhos mas participam da gestão das
fazendas, inclusive em cargos estratégicos, como a engenheira-chefe e a
Secretária Geral. Outra mulher é a líder informal dos trabalhadores, e, com seu
jeito rebelde, pressiona os chefes quanto ao cumprimento dos prazos de entrega
das sementes – em determinado momento, ela formaliza tudo em atas manuscritas,
um comentário bem-humorado e interessante, se considerarmos o papel da
burocracia no regime stalinista.
É
muito interessante o papel da engenheira-chefe, uma mulher que lidera a questão
técnica com as máquinas, um papel habitualmente destinado às figuras
masculinas. O papel das máquinas no filme é um dos mais fortes elementos. A
produtividade da fazenda está reduzida pois os tratores apresentam defeitos em
proporção maior que a média. Apesar de todo o filme ser passado na colheita no
campo, todo o seu discurso é favorável à mecanização da agricultura no
interior, e que as máquinas colaboram com o trabalho humano. Nesse debate entre
rural e urbano ou entre arcaico e moderno, o filme claramente passa uma mensagem
de modernização da Rússia aderente tanto ao progresso técnico (o uso das
máquinas) quando à importância da ciência e da qualificação dos trabalhadores.
Apesar das boas intenções do comandante, fica claro que as fazendas russas não
podem mais ser comandadas “à moda antiga”, e que é preciso adotar práticas e tecnologias
mais avançadas para além dos métodos do comando da guerra. O bravo e guerreiro
comandante precisará ser adestrado, tanto emocionalmente quanto
profissionalmente (o curso de liderança dos kolkhozes) para melhor cumprir sua
missão.
Para
além das questões digamos sociológicas da trama, há momentos de respiro poético
e de gosto de linguagem. A forte presença da natureza, por ser um filme calcado
na terra, faz com que o filme cresça em sua segunda metade, quando o inverno dá
lugar à primavera. Não apenas o filme se torna mais solar, mas a mudança
coincide com o momento em que o maior momento de crise da fazenda parece dar
lugar a uma renovada esperança. É linda a cena em que Pudovkin corta para os
planos da natureza em que vemos o degelo: o coração desse homem amargurado
parece se dsmanchar à medida em que o tempo passa, até que há uma linda solução
de roteiro: o momento em que ele finalmente canta com as trabalhadoras na plantação.
Esse
momento é retomado mais à frente na sequência da colheita, quase um orgasmo da
união dos trabalhadores em torno do seu árduo trabalho. Mas nesse momento de
êxtase, Pudovkin opta por um recuo atípico, em que o protagonista recebe por
telegrama a notícia da morte de seu pai, e resolve permanecer liderando o
processo em vez de despedir-se dele. A morte do pai adquire um significado
simbólico de transição de vidas, e não há como não se comover com a bela opção
do diretor em mostra o grande guerreiro sentado prostrado diante dos vultosos
campos, mas recusando-se a chorar.
Certamente
um especialista em política russa poderá vislumbrar mais camadas e nuances no
retrato que o filme apresenta dos kolkhozes. Aqui nos interessa o cinema – mas como
lidar com o fato de que o cinema lida com o mundo social, e especialmente neste
filme, em que mais importante que o cinema era estimular o público? De todo modo,
diante de tantas lacunas, fica a constatação de que muitas vezes tiramos mais
lições de um filme menor de um grande artista do que de um filme maior de um
realizador ordinário. Esse filme esteve disponível no canal do You Tube CPC
UMES FILMES, que vem fazendo um trabalho inestimável de maior reverberação do
mais raro cinema soviético.
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